A religião nem sempre caminha de mãos dadas com a ciência, mas desta vez parece ter dado as evidências como boas: a segunda encíclica do Papa Francisco, intitulada Laudato Si [Abençoado Seja]: Sobre cuidar da casa comum, aceita o consenso científico sobre as mudanças climáticas e, mais importante, sobre o papel do homem nessas mudanças. O documento só seria revelado na quinta-feira, 18, mas a revista italiana L’Espresso divulgou antes o rascunho de 192 páginas que lhe está na origem (uma fuga de informação rapidamente apelidada de “hedionda”, num comunicado do Vaticano).
A julgar pelo que foi agora revelado, as palavras papais são ainda mais claras do que se previa nos meios religiosos e políticos. “Se a tendência atual se mantiver (…) podemos testemunhar alterações climáticas como nunca vimos antes e a destruição sem precedentes dos ecossistemas, com sérias consequências para todos nós.”
Francisco revela ainda uma particular preocupação com os mais desfavorecidos, de longe os mais afetados pelas alterações do clima – como que justificando, de uma assentada, duas razões para ter escolhido para si o nome de Francisco de Assis, patrono do ambiente e defensor dos pobres. “O aquecimento causado pelo consumismo extremo de alguns países ricos tem repercussões nos locais mais pobres da Terra, especialmente em África, onde o aumento da temperatura, juntamente com as secas, tem tido efeitos desastrosos nas colheitas.” Também esta afirmação é mais do que uma questão de fé – entre 1970 e 2008, 95% das mortes provocados por desastres naturais ocorreram em países em desenvolvimento, segundo investigadores do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla original, o organismo científico, que publica relatórios regulares sobre os efeitos do aquecimento global, com a chancela da ONU).
Todos diferentes, todos bem diferentes
Não é difícil perceber porque é que as mudanças do clima afetam mais quem menos tem. Os principais efeitos – aumento da intensidade e frequência de fenómenos extremos, como secas, tempestades e ondas de calor, e a subida do nível médio das águas do mar – são mais destrutivos quanto mais frágeis forem as infraestruturas. O sul dos Estados Unidos e as Filipinas são constantemente atingidos por ciclones e tufões violentos, mas o número de vítimas é incomparavelmente maior no Sudeste Asiático. Em 2005, o furacão Katrina, por exemplo, o mais violento da história americana recente, matou 1833 pessoas; durante o tufão Haiyan, em 2013, mais de 7000 filipinos perderam a vida.
O problema vai para lá das mortes diretas. Os países pobres perdem anualmente 0,3% do seu PIB em desastres naturais – três vezes mais do que os ricos. Algumas ilhas-estado, particularmente vulneráveis pela subida do nível do mar, chegam a perder 8% da sua riqueza num ano. A ONU estima que, entre 2003 e 2013, 1,9 mil milhões de pessoas de países em desenvolvimento tenham sido afetadas por fenómenos naturais, com as perdas económicas a triplicar em relação à década anterior.
É a ciência, estúpido!
Nada disto é novo. Mas o sentido de oportunidade do Papa Francisco é perfeito: ao lançar agora a encíclica, garante a sua influência na conferência do clima da ONU, em Paris, entre 30 de novembro e 11 de dezembro. Sobretudo através dos países católicos da América Latina, que podem ser essenciais para o desfecho da cimeira. O texto também será aproveitado pelos ambientalistas, na pressão sobre os líderes mundiais, de forma a ser conseguido um acordo vinculativo que trave as emissões de gases com efeito de estufa, para que o aumento de temperatura não ultrapasse os 2º C (limite a partir do qual o aquecimento é considerado catastrófico).
Quem ficou irritado com esta tomada de posição foram os conservadores americanos, em grande parte negacionistas das alterações climáticas (embora os milhões de dólares que as petrolíferas lhes doam desempenhem o seu papel nessa opinião). O ex-senador católico Rick Santorum, estrela dos republicanos extremistas, já apelou ao Papa para deixar a ciência para os cientistas – como se Francisco não estivesse a ressoar o que dizem esses mesmos cientistas. Não deixa de soar irónico que seja a direita mais religiosa a insurgir-se contra a autoridade máxima da Igreja.