Na madrugada de 21 de outubro, perto das seis da manhã, Abel Rodrigues acordou com o som da campainha. Na sua casa em Bridgewater, no estado de Nova Jérsia, Estados Unidos, abriu a porta e, ainda no escuro, descobriu sete agentes da polícia armados. A mulher já estava do seu lado quando lhe leram os direitos, mas os filhos, um casal de nove e onze anos, dormiam. O casal ouviu a lista de crimes de que o português era acusado: falsa declaração de rendimentos, troca ilegal de cheques, extorsão, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Abel foi algemado e levado para o carro-patrulha enquanto tentava tranquilizar a mulher. Três anos e meio depois do início, chegava ao fim a operação Punho Cerrado, que envolvera quatro agências especializadas e cerca de 35 agentes. Com o fim da investigação, chegava também o fim do sonho americano do emigrante minhoto. Uma história digna da premiada série Os Sopranos, cuja ação se passa também no Garden State.
Abel não foi surpreendido. Vizinhos, clientes e antigos funcionários dizem que o português já esperava este dia desde que, em dezembro de 2012, a polícia foi ao seu restaurante Portucale, em Newark, e levou computadores, caixas registadoras e documentos. Com a voz tranquila, Abel mostrou escrituras e contratos. Insistiu que a sua atividade era legal. A polícia discordou e ele passou a esperar o seu regresso. Mas nunca imaginou que, quando o momento chegasse, seria acusado de associação criminosa com os Genovese, a família mais poderosa da máfia de Nova Iorque.
De São Paio aos cheques no Rio Douro
Abel acabou na prisão de Morris County lado a lado com Charles Tuzzo, de 80 anos, e Vito Alberti, 55, dois membros dos Genovese. Encontrou também Domenick Puccillo, 56, o seu parceiro de negócios, e Manuel Rodriguez, 49, que o tinha apresentado a Puccillo anos antes. No mesmo dia, a Procuradoria de Nova Jérsia deu uma conferência de imprensa anunciando os detalhes da operação. “A nossa mensagem para a máfia é: enquanto existirem, vamos continuar a enviar-vos para a prisão”, avisou o procurador John J. Hoffman, minutos antes de libertar as fotos de Rodrigues e dos outros acusados. A notícia atravessou logo o Atlântico. Jornalistas foram bater à porta da mãe de Abel, de 83 anos, que vive sozinha em Melgaço, e perguntaram-lhe pelo filho mafioso. O minhoto acredita que, se o pai ainda fosse vivo, teria morrido nesse momento.
Abel nasceu no lugar de Real, em São Paio, há 52 anos. Começou a trabalhar ainda criança, ajudando o pai na lavoura. As duas irmãs emigraram para França e, pouco depois, também ele abandonou o País. Emigrou para Punto Fijo, na Venezuela, com 20 anos. Um colega da construção falou-lhe dos EUA, dizendo que se ganhava bom dinheiro. Em outubro de 1983, Abel chegava ao bairro do Ironbound, em Newark, onde se concentra parte da comunidade portuguesa. Arranjou trabalho na construção, mas a obra parou meses depois devido ao inverno. Acabou como empregado de balcão do Rio Douro, um café português, na Elm Street.
Foi neste local que trocou o primeiro cheque. Por ordem do patrão, recebia cheques de imigrantes indocumentados, que não podiam ter conta de banco, e de pessoas que não tinham dinheiro na conta para cobrir o salário dessa semana. Embora ilegal, era uma atividade comum. Dezenas de estabelecimentos no bairro faziam o mesmo.
As comissões e o negócio com don Puccillo
Em 1987, um bar de espanhóis chamado Escorial, do outro lado da rua, foi posto à venda. Abel comprou-o por 88 mil dólares (69 mil euros). No início, tinha apenas um funcionário, e abria das sete da manhã às três do dia seguinte. Dormiu muitas noites na cave, para aproveitar cada hora de sono. Continuou a trocar cheques, a maioria a galegos. Quando alguém lá chegava e só pedia para trocar o cheque, fazia-os esperar e beber algumas cervejas, para dar lucro à casa. Só começou a cobrar comissão depois de receber vários cheques sem cobertura. A comissão não era fixa e variava entre um e três por cento. A atividade, lucrativa, manteve-se durante anos.
Em 2007, os bancos mudaram os seus protocolos. Começaram a recusar trocar cheques endereçados a terceiros, sobretudo quando eram elevados. Foi nessa altura que o italiano Manuel Rodriguez apareceu no bar, perguntando a Abel se ainda estava no negócio. Os dois homens já se conheciam, porque Manuel era dono de outro bar da cidade, o Guitar Bar. Abel partilhou as suas dificuldades e o homem respondeu que tinha uma solução. Podia apresentá-lo a Domenick Puccillo, que tinha um negócio licenciado de troca de cheques, e muito, muito dinheiro. Abel aceitou a ajuda. Assinou um contrato com Puccillo, o mesmo que viria a mostrar à polícia, anos depois, quando lhe inspecionaram o restaurante. O mesmo contrato que lhe disseram que não era válido.
Puccillo tinha ligações à máfia, mas Rodrigues pode nunca o ter sabido. Um dirigente da polícia de Newark garante que a máfia teve uma presença forte na cidade durante décadas, mas que a sua influência é hoje reduzida. Existe em áreas como o porto comercial e em negócios como o lixo e máquinas de jogo. Raras vezes a sua presença se traduz em episódios de violência. Além disso, tem uma organização hierarquizada, em que um nível não contacta com o outro. Mesmo assim, terá Abel imaginado como é que os sócios tinham acesso a quantias tão elevadas? Terá perguntado pela origem do dinheiro que transacionava?
Com Puccillo na retaguarda, o negócio do português cresceu. Abel montou um escritório nas traseiras e destacou alguns funcionários para lidar com estes clientes. Às suas mãos começaram a chegar cheques de 100 mil dólares. Segundo a acusação, o empresário trocava estes valores sem pedir identificação ou manter registo da transação, permitindo aos clientes escapar ao escrutínio do estado. Empresas de construção brasileiras e portuguesas recorriam ao serviço, assim como negócios que recolhiam cheques menores e depois os trocavam em conjunto no Portucale. A operação tornou-se um negócio de milhões.
Benfiquista e bom patrão
Foi no bar que Abel conheceu Diene Amorim, uma brasileira com quem tem dois filhos. Hoje o casal vive em Bridgewater, numa casa de 315 metros quadrados que comprou há nove anos por 655 mil dólares (cerca de 517 mil euros), mas durante anos viveu num apartamento modesto por cima do restaurante. Os dois vestem-se bem, embora discretos. Abel conduz um Audi A4 com oito anos e Diene uma carrinha Volvo. Os filhos frequentam a escola pública e vão todos os fim de semana à catequese na igreja portuguesa de Nossa Senhora de Fátima. Os vizinhos dizem que o casal é boa gente. Todas as manhãs, Abel estaciona no parque do Portucale, que transformou em restaurante em 2011. As obras terão custado centenas de milhares de dólares, mas o português comentou com conhecidos que apenas o tinha feito para cumprir um desejo da mulher. Antigos funcionários dizem que é o melhor patrão que tiveram, que paga sempre a horas e ajuda quando têm muito movimento. Prefere estar no escritório, mas vem para a sala quando joga o Benfica, de que é adepto ferrenho, e pelo qual chegou a ir a Portugal para acompanhar jogos importantes. Terá este homem, que ninguém critica, sabido que estava a movimentar dinheiro da máfia obtido através de esquemas ilegais de jogo, agiotagem e tráfico de droga? Terá descoberto a origem do dinheiro e sido proibido de abandonar o negócio? Ou sabia de tudo e preferiu continuar a lucrar?
Um ano depois de assinar contrato com Puccillo, a sua companheira comprou um serviço de troca de cheques, na zona norte da cidade. Abel nunca contratou esta empresa, continuando a preferir os serviços do italiano. Num dia fraco, movimentava entre 20 a 50 mil dólares. Nos dias bons, chegava a 400 mil. O dinheiro ficava pouco tempo no restaurante. Assim que chegava, o português agarrava no telefone e em minutos chegavam homens de Mercedes, que saiam de envelope na mão.
No bairro circulava todo o tipo de rumores. Nunca se falou em máfia, mas muitos comentavam que algo ilícito se passava entre aquelas paredes. Especulava-se que Diene tinha comprado o negócio em North Newark para encobrir irregularidades, mas a brasileira nunca foi acusada. Durante anos, todos os boatos se desvaneceram, nunca se concretizando numa queixa às autoridades. Entretanto, o negócio continuava a crescer.
Malas de dinheiro e assédio policial
O dinheiro era entregue a Abel, todos os dias, por funcionários de Puccillo. Alguns clientes recordam o momento da entrega, quando um carro de cor escura estacionava junto à porta, os funcionários pediam aos clientes que ninguém saísse, um homem entrava com uma mala, dirigia-se ao escritório na cave e saía. Tudo acontecia em segundos. A operação aconteceu centenas de vezes, durante anos, sem qualquer falha. Até à manhã de 19 de maio de 2011.
Nessa data, um ex-polícia saiu do carro e dirigiu-se para o Portucale segurando uma mala. No caminho, alguém disparou. O homem estava armado e respondeu. Foi atingido de novo e caiu de joelhos. Nesse momento, um segundo assaltante disparou, atingindo-o no queixo. O homem acabou no passeio junto à entrada de uma loja de bebidas. Um dos assaltantes fugiu, o outro agarrou na mala, entrou num carro e conduziu umas dezenas de metros. Devido aos ferimentos, chocou contra um semáforo. Quando a polícia chegou, estava a perder a consciência e a mala continuava no carro. No interior, a polícia descobriu 400 mil dólares. Em minutos, o local estava cheio de agentes. No mesmo dia, Abel começou a ser investigado.
Policias à paisana visitaram o restaurante. O português foi seguido e as suas comunicações podem ter estado sobre escuta. Convencido de que estava protegido pelo contrato que tinha assinado com Puccillo, continuou a trocar cheques durante mais de um ano e meio. Só em dezembro de 2012, quando a polícia o interrogou, é que contratou um advogado, o reputadíssimo especialista em crimes económicos Michael Critchley, e fechou atividade. Tinham-se passado 25 anos desde que tinha trocado o primeiro cheque.
Segundo a acusação, em três anos e meio, Abel ajudou a lavar 400 milhões de dólares, perto de 315 milhões de euros, e cobrado comissões de nove milhões. Dos três por cento que cobrava, guardava um por cento. ?O resto do dinheiro pertencia a Puccillo, que ficaria com uma parte e dava outra a Rodriguez, Tuzzo e Alberti. Pelos crimes de que é acusado, Abel arrisca uma pena de 20 anos.
Pesadelos e registos em Elm Street
Nos últimos anos, investiu com sucesso no imobiliário. Na semana passada, as autoridades congelaram as suas contas bancárias, o edifício do restaurante, dois prédios na mesma rua e a casa da família. Mas o empresário terá, pelo menos, outro prédio e dois parques de estacionamento na Elm Street, um segundo bar em Newark e um restaurante na Florida, que poderão estar no nome de outras pessoas e empresas.
Em 2013, por saber que estava a ser investigado, mudou algumas propriedades de nome. De acordo com os registos fiscais do condado de Essex, consultados pela VISÃO, o prédio no número 127 da Elm Street, por exemplo, passou a 21 de junho para o nome de uma empresa com o nome Union Street Realty, pelo preço de 400 mil dólares (um valor 80 mil dólares abaixo do que Rodrigues tinha pago em 2004). A Union Street Realty tem sede no número 129, a morada do restaurante Portucale. No mesmo dia, Rodrigues vendeu a esta empresa o prédio do número 125 por 500 mil dólares (menos 50 mil euros do que o valor pago em 2004).
Quando Abel foi detido, o juiz definiu uma caução de 400 mil dólares. No dia seguinte, a companheira entregou 40 mil dólares e uma garantia de 360 mil para o libertar. Esteve preso menos de 48 horas. Em liberdade, garante que apenas trocou cheques e nunca se envolveu com a máfia. Na quinta de manhã, 23, estava de volta ao Portucale, que não chegou a fechar, anunciando sempre em cartazes a festa que, esta sexta-feira, 31, vai encher o espaço para celebrar o Dia das Bruxas. Abel continuou a viajar depois de saber que estava a ser investigado. Este verão, passou seis semanas em Portugal com a mulher e os filhos. Além de Melgaço e da mãe, visitou amigos de norte a sul. Foi a quarta viagem desde 2012 e também esteve no Brasil. Podia ter fugido a qualquer momento. Qualquer especialista o teria aconselhado a pedir cidadania norte-americana, para evitar a deportação caso seja condenado, mas o emigrante também decidiu não o fazer. Abel quer enfrentar a justiça. Está convencido de que o seu sonho americano não terminou.