Quem, nestes meses de pandemia, não deu por si a fazer uma compra online, que dê o primeiro clique ou feche já a janela de diálogo. Há uma primeira vez para tudo. E para muitos – compradores e empresas – foi esta. Fechados entre quatro paredes, os consumidores encontraram nos quatro cantos do ecrã uma montra de recurso; e quem vende, perante casa encerrada ou poucos fregueses à porta, teve de se reinventar e passar a tratar por tu o comércio eletrónico.
O fenómeno, que deu um impulso decisivo às vendas através da internet – entre os comerciantes europeus, houve semanas em que a faturação quase duplicou face ao ano passado –, abriu-nos ainda mais os olhos para os mecanismos que algumas empresas e marcas utilizam para captar a nossa atenção e convencer-nos a comprar. Mais e, se possível, por mais vezes.
Os fatores comportamentais que condicionam a aquisição de um bem ou serviço variam em função do indivíduo, mas, regra geral, o preço e a qualidade surgem na equação, bem como o peso que cada um atribui à relação entre ambos. Há ainda outro fator envolvido: os custos de transação. Ou seja, tudo o que é necessário investir na aquisição de um bem, que não passa só pelo ‘vil metal’. “Não apenas o tempo e dinheiro investidos, mas também o investimento psicológico, por exemplo, em encontrar ‘a melhor opção’”, sublinha Marc Scholten à VISÃO.
É, aliás, nestes custos que mais diferenças conseguimos encontrar entre os padrões que definem a compra física e a que é feita online, considera este especialista em economia comportamental. É verdade que a compra eletrónica reduz o tempo e o dinheiro investidos no processo e aumenta a comodidade – assim que deflagrou a Covid-19, quem não preferiu, por razões de segurança e até de preservação de saúde, encomendar a lista de compras para a despensa a partir do conforto do teclado? Mas os custos psicológicos tendem a agravar-se com esta opção, explica Scholten.
Como? Investe-se mais em identificar os sites apropriados e as empresas em que se pode confiar; em ler e compreender a informação no site; em encontrar, processar e comparar a informação relevante para a compra e as ofertas de várias plataformas, sobretudo porque não existe contacto físico com os produtos nem com funcionários ou vendedores cara a cara, que possam ajudar. “Muitos consumidores poderão não ter ‘literacia informacional’ suficiente para suportar tal investimento psicológico”, afirma o investigador integrado do CEG-IST.
Reconhecer as mecânicas
Com cada vez maior clientela e faturação – segundo o Statista, é esperado que, no próximo ano, mais de um quarto da população mundial, ou 2,14 mil milhões de pessoas, compre bens e serviços online, e que, em 2023, as vendas através destes meios representem 22% do total mundial –, essa literacia e investimento psicológico podem ser recursos indispensáveis para detetar e reconhecer os mecanismos que marcas e empresas desenvolveram para incrementar o seu negócio, tirando partido das características humanas.
Tudo o que leve ao engano cria um problema logístico” ao e-commerce, defende Guilherme Coelho
As ferramentas são várias e vão muito além das cores garridas, da linguagem laudatória ou do grafismo utilizados para destacar os produtos-estrela. Quem nunca reparou nos preços terminados em ,99 para levar à ilusão de que estamos a fazer a melhor compra? Ou nos portes de envio oferecidos se comprarmos acima de um determinado valor? Ou nas sugestões de produtos complementares (“Comprou um saco de carvão, talvez lhe interesse um grelhador novo…”)?
Um grupo de especialistas das universidades de Princeton e Chicago foi para além disso e analisou recentemente cerca de 11 mil sites de comércio eletrónico, tendo identificado, em 11% deles, estratégias visuais e textuais denominadas “dark patterns”, que podem conduzir o utilizador a uma decisão de compra que nem sempre seria a inicial, ou a ceder mais do que aquilo a que estava disposto (ver caixa), beneficiando as empresas. Sem surpresa, quanto mais populares os produtos, maior a probabilidade de estarem presentes estas estratégias.
Mecânicas como a da escassez (“compre antes que esgote”), urgência (“falta um dia para esta oportunidade expirar!”), recomendação (os comentários de outros compradores, como “gostei muito, chegou depressa, ficou muito barato e funciona que é uma maravilha”, promovem a confiança), ou até mesmo de menorização ou humilhação (“vai mesmo deixar escapar esta oportunidade?”) estão entre as inventariadas. Sem esquecer a diluição da mensagem publicitária para que pareça outra coisa, ou o estímulo para abdicar de mais dados e privacidade em troca do acesso às melhores ofertas.
A linha entre o que pode ser considerado legítimo ou uma via rápida para o logro pode ser muito ténue. Tudo depende do uso que se faz destas técnicas e da verdade por trás delas – se, por exemplo, as avaliações são reais ou as ofertas limitadas correspondem ao stock realmente existente. “As ‘dark patterns’ estão a ser usadas para fragilizar a privacidade e tirar aos utilizadores a capacidade de refletir criticamente sobre as suas ações. O design e a ciência comportamental tornaram-se armas para benefício único dos vendedores online e para explorar os utilizadores”, defendeu recentemente um dos autores do estudo à Wired Arunesh Mathur.
Guilherme Coelho desconhece que em Portugal haja empresas ou marcas a seguir deliberadamente estes caminhos. “Tudo aquilo que leve ao engano cria um problema logístico, porque dá azo a devoluções. E isso é determinante para o sucesso de uma estratégia de e-commerce. Além disso, com reviews [avaliações] negativas, vai ter perna muito curta”, defende o formador na Lisbon Digital School e criador do marketplace Alterway. Para o especialista, o equilíbrio está em extrair elementos positivos da análise de comportamento dos consumidores para melhorar a sua jornada de compra e colocar a loja online no topo das suas preferências, ainda que a generalidade das empresas, sobretudo as recém-chegadas, não tenha uma estratégia para extrair valor do manancial de informação de que já dispõem, lamenta.
Isto está nos antípodas do que faz a Amazon, que “tira todo o partido e mais algum” dos dados sobre pesquisas e compras realizadas em visitas anteriores, para sugerir a aquisição de novos produtos ou serviços, multiplicando, com isso, as possibilidades de aumentar a faturação. Ironicamente, o forte aumento da procura durante a pandemia e os constrangimentos logísticos criados obrigaram a empresa a desativar transitoriamente, em abril, a função que sugeria a aquisição de produtos que normalmente são comprados em conjunto, como revelou o Wall Street Journal.
Reclamações acompanham crescimento
Enquanto se estreia ou acelera a presença nas vendas online, as empresas penetram no terreno pedregoso que consiste em garantir, em simultâneo, uma experiência satisfatória ao cliente, rapidez nas entregas e redução de custos. Em contexto de pandemia, nem sempre conseguiram fazê-lo, como se vê pelo aumento das reclamações relacionadas com comércio eletrónico nos últimos meses, em Portugal. No espaço de um ano, praticamente triplicaram, consolidando este setor como o segundo que é alvo de mais reclamações no Portal da Queixa. Até ao início de setembro, as vendas online motivaram mais de dez mil queixas naquele site, envolvendo empresas do retalho da eletrónica, cosméticos e material de desporto. A maior parte do descontentamento manifestado pelos clientes prende-se com questões posteriores ao ato de compra, como o processo de entrega ou a inexistência de stock. Queixas de pessoas que se tenham sentido enganadas ou impelidas no processo de compra a adquirir algo que não queriam “não têm tanto significado”, explica à VISÃO Pedro Lourenço, CEO do Portal da Queixa.
Conhecer as opções disponíveis e os fatores que sustentam a preferência é crucial para uma decisão racional
Distinguir o que é a indução de consumo, estimulada pela própria vontade do cliente de obter o melhor negócio, da tentativa de enganar é, aliás, um esforço de separar as águas em que o setor parece insistir. “Foi o consumidor quem espoletou essa dinâmica de trazer os saldos para fora da época, não quer pagar o preço transacional. E o marketing ajustou-se ao padrão de consumo, às promoções, às black fridays”, argumenta Guilherme Coelho.
No fim de contas, tudo se resume a tomar uma decisão racional, que implica que o consumidor não só faça a sua escolha de acordo com a sua capacidade orçamental, mas esteja informado sobre as opções que tem e sobre os fatores que sustentam a sua preferência. São estas duas últimas que os economistas comportamentais, como Marc Scholten, veem como as “mais problemáticas”. A solução pode passar por cruzar fontes de informação, consultar em primeira mão quem já conhece ou experimentou o produto ou serviço – salvaguardando as diferenças, já que “o que ‘funciona’ para um, não funciona necessariamente para outro”, nota. Por outro lado, há um trabalho a fazer pelos consumidores para tentarem perceber os seus próprios gostos. Têm mesmo necessidade de comprar determinado produto? Ou fazer certo consumo? São os prós maiores do que os contras?
Passos que podem ser seguidos para que o consumidor consiga sair da rede melhor do que entrou: livre, satisfeito e sem se embaraçar.
As estratégias mais usadas para condicionar compras online
Num paper publicado no final do ano passado, um grupo de especialistas das universidades de Princeton e Chicago analisou cerca de 11 mil sites de comércio eletrónico. Destes, 11% usavam estratégias visuais e textuais com o intuito de conduzir o utilizador a uma decisão que nem sempre seria a inicial, ou a ceder durante o processo de compra mais do que aquilo a que estaria disposto. Estas são algumas das que foram identificadas:
Pela calada – Sem que o consumidor se aperceba ou consinta, o vendedor acrescenta produtos ou serviços ao carrinho de compras ou só dá a conhecer, no final da compra, custos adicionais associados à transação e que estiveram ocultos durante todo o processo de decisão.
Tic-tac – É a mesma sensação de tentar descobrir que fio cortar para desativar a bomba, a cinco segundos do zero. Mensagens como “Esta oferta expira dentro de dez minutos” procuram obrigar o consumidor a escolher rápido, nem sempre garantindo a racionalidade da decisão.
Ilusão e sugestão – Através de linguagem confusa, discurso humilhante – “Vai mesmo deixar escapar esta oferta?” – e elementos gráficos que destacam uns produtos em detrimento de outros, é possível conduzir e influenciar a decisão de compra. Para motivar um gasto maior, pode ainda ser apresentada uma seleção intencional dos produtos mais caros ou sugerir juntar à cesta produtos complementares aos que vamos comprar e que inicialmente não tínhamos pensado adquirir.
Não sou o único – Informações sobre a atividade de outros utilizadores na sua interação com o site (recomendações positivas sobre um determinado produto ou dados on time do número de pessoas que estão a visitar a mesma plataforma) tendem a contribuir para gerar um efeito “rebanho”.
Já sobram poucos – O receio de escassez em torno de um produto pode ser usado para acelerar ou precipitar uma decisão imediata. Quem já tentou marcar férias e nunca suou frio quando viu mensagens como “Há atualmente 18 pessoas a pesquisar este apartamento” ou “Já só restam três quartos neste hotel nesta data”?
Daqui não sai – São estratégias que vão muito além da fidelização tradicional e pretendem reter o consumidor o mais possível. Quantos serviços são tão facilmente subscritos e, depois, temos de percorrer um labirinto de procedimentos no site para desistir deles?
Ação forçada – Alguns sites têm mecanismos que obrigam a partilhar informação pessoal ou a subscrever um serviço adicional para concluir a tarefa que se pretende realizar (como uma compra ou outra subscrição).