Está confirmado: tal como se previa, o Orçamento do Estado (OE) para este ano foi aprovado na generalidade na tarde desta sexta-feira, 10. Os 108 votos da bancada do PS chegaram para garantir que a proposta de lei passasse, uma vez que os antigos parceiros da geringonça (BE, PCP e PEV), assim como o PAN, o Livre e os três deputados do PSD-Madeira optaram pela abstenção.
Assim, somados, PSD, CDS, Chega e Iniciativa Liberal totalizaram 83 votos e foram incapazes de contrariar a maioria de esquerda. No debate, ficou claro, porém, que o trabalho de afinação do OE promete ser exigente para os parlamentares socialistas, dado que o caderno de encargos das forças que se abstiveram é extenso (e financeiramente pesado).
Igualmente a votos foram as Grandes Opções do Plano para 2020 e o Quadro Plurianual de Programação Orçamental para o período 2020-2023, exatamente com os mesmos resultados. A partir de agora, decorrerá a discussão do OE na especialidade, em várias comissões parlamentares, até que a versão final do documento regresse ao plenário para a votação final global, agendada para 6 de fevereiro.
No segundo dia de debate, Mário Centeno e Pedro Siza Vieira deram voz às mesmas ressalvas (duas), à mesma garantia e ao mesmo alerta que o Governo já tinha alinhado para o arranque das mais de 11 horas de intervenções sobre o Orçamento do Estado para 2020.
Na linha daquilo que António Costa já tinha feito ontem, este, lembraram os governantes, é o primeiro orçamento da legislatura – que é como quem aconselha calma, porque há tempo, nos próximos anos, para responder às exigências dos partidos da esquerda. Além disso, o debate da proposta na especialidade começa dentro de momentos. “Para o ano cá estaremos e vamos seguramente fazê-lo em conjunto”, disse, por exemplo, Mário Centeno ao PEV em relação à revisão dos escalões do IRS. O tempo para aprofundar acordos e disponibilidade para negociar foram, assim, as ressalvas que o Executivo fez questão de assinalar.
Depois, a garantia. As eleições de 6 de outubro ditaram uma maioria relativa do PS no Parlamento. Já é parte da história política recente que o acordo que em 2015 deu origem à “geringonça” não foi reeditado, mas isso não significa que o Governo queira virar a página do diálogo à esquerda. É com os antigos parceiros, e agora também com o Livre e com o PAN, que o Executivo pretende continuar a trabalhar.
E, por fim, o alerta. Há tempo e disponibilidade para negociar, é certo. Mas o Governo, ainda que precise fatalmente de votos (mesmo que sob a forma de abstenções) para aprovar o Orçamento na sua versão final, também não passará cheques em branco para que os partidos de esquerda levem avante todas as medidas que já disseram querer inscrever no documento.
E ainda deixou mais um aviso: “No momento de votar este Orçamento, não tentem ser pessoanos, porque Fernando Pessoa só houve um. Não votem as medidas de despesa com um heterónimo gastador e as de receita com um heterónimo aforrador.”
Siza Vieira até lhe pode chamar a “estrela” do debate, mas a esquerda parlamentar não recua nas críticas ao excedente orçamental de 600 milhões de euros com que o Governo prevê chegar ao final de 2020.
“Nestes brilharetes, foram mais de três mil milhões de euros em medidas que o senhor ministro negou à Assembleia oportunidade de discutir”, apontou Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda), recordando as contas do défice que, ano após ano, o Governo calculou acima daquilo que, no final, acabou por alcançar.
“Precisamos de um orçamento que tenha como critério respostas aos problemas do país e não a resposta a imposições de Bruxelas”, disse o deputado João Dias (PCP), insistindo na ideia de que o excedente é a face de bom aluno que o Governo quer apresentar às instituições europeias.
À direita, só houve uma surpresa: a última intervenção parlamentar de Assunção Cristas. A presidente cessante do CDS, saudada por Eduardo Ferro Rodrigues, despediu-se evocando José Sócrates e fazendo alguns apelos para dentro. “Há dez anos, quando entrei para o Parlamento, a minha intervenção foi precisamente na área do Orçamento e das Finanças. O que ouvi então [2009], infelizmente, é bastante semelhante ao que ouvi ontem [quinta-feira]. O que aconteceu a seguir é conhecido”, recordou.
Entre os remoques ao Governo de António, pediu aos centristas que não baixem os braços e que trabalhem arduamente na “construção de uma alternativa”, que, se não for para hoje, pode ser para amanhã.
Por seu turno, Rui Rio manteve a toada da intervenção da véspera. Insistiu na ausência de fio estratégico do OE, lamentou que o excedente seja conseguido à conta de méritos “alheios” ao Executivo (o aumento da carga fiscal e a política monetária do Banco Central Europeu) e ainda carregou sobre os partidos que viabilizaram a proposta. “Será dificil convencer as forças de esquerda que aumentar a poupança será importante para investir sem aumentar o endividamento externo. É dificil mas terá que ser esse necessariamente o caminho a seguir”, explicou.
Já fora do hemiciclo, em declarações aos jornalistas, o presidente e líder parlamentar do PSD regressou aos 590 milhões “antecipadamente cativados”, que considerou o Wally deste OE, e garantiu ter sabido pela comunicação social da abstenção dos três sociais-democratas eleitos pelo círculo da Madeira.
Em nome do Chega, e num estilo truculento, André Ventura procurou vincular o BE à proposta do Governo, referindo-se a um “namoro ocultado” pelo primeiro-ministro e pela cúpula bloquista. “Este Orçamento estava decidido desde o início, estava tudo combinado atrás das cortinas. Não vale a pena enganar os portugueses”, criticou.
Apontando a um Estado a quem “dar o exemplo não é com ele” e que exige aos portugueses que “paguem, paguem, paguem”, o líder e deputado único do recém-formado partido endureceu o discurso, dirigindo-se a Costa e Centeno em simultâneo, realçando que as previsões do OE “são tão irrealistas” que até ele não acreditaria no articulado, se já “não tivesse visto um primeiro-ministro que não ganhou eleições a governar”.
Mais criativo foi o discurso de João Cotrim de Figueiredo. O presidente e deputado único da Iniciativa Liberal usou vários exemplos de portugueses (fictícios) para deixar a nu aquelas que, na sua opinião, são as insuficiências do OE, desde a falta de liberdade de escolha na educação e saúde, à inexistência de incentivos para criar emprego no interior, ao peso da fiscalidade sobre as famílias e as empresas e até piscou o olho a eleitorado com menos recursos económicos.
“Um português que ganhe o salário mínimo, em 2020, entre TSU e impostos indiretos, vê o Estado ficar com um quarto do seu rendimento”, disparou, aludindo também a “um País parado”, “de mão estendida”, “à espera do Estado” e “profundamente triste”. E ainda regressou à chaga do familygate, quando se referia um outro português ficcionado: “Este português ao menos não chegou à conclusão de que era preciso inscrever-se no PS para subir na vida…”