Simone Biles, estrela americana de ginástica artística, conquistou a medalha de bronze na trave, dias depois de ter desistido da competição olímpica para zelar pela sua saúde mental, no seguimento de uma espécie de tontura que desconecta o cérebro do resto do corpo.
A atleta já tinha partilhado na conta pessoal de Instagram o que o fenómeno provoca e mostrou parte dos seus últimos treinos, numa publicação temporária. Mas o que são, então, os twisties? E não, não há uma tradução direta e mesmo em inglês é uma palavra usada exclusivamente para descrever este fenómeno: “A pessoa perde a movimentação no espaço, perde a referência de onde está e o que está a fazer”, explica Duarte Araújo, da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa.
A teoria mais comum para explicar o fenómeno é uma explicação da psicologia cognitiva, usando a metáfora do cérebro como um computador.
“O que se pretende é programar tão bem quanto possível o movimento e a prática vai dizendo qual é a informação que deve ser percecionada, qual é a escolha do movimento que deve ser feita e depois como o movimento deve ser enviado pelo cérebro para ao corpo. Portanto é baseado numa espécie de programação de modelo interno que depois, sempre que é ativado, com um estímulo, como a vontade do atleta por exemplo, o programa começa a correr e o corpo está a executar esse programa”, começa por esclarecer o professor de Psicologia do Desporto.
O cerebelo, localizado na parte inferior e posterior do cérebro, é tido como a parte onde está alojado o modelo interno. Portanto o cerebelo recebe as informações visuais e de movimentos e dos ângulos do movimento que o atleta está a fazer e diz se essa sensação do movimento corresponde àquela que devia ter através da comparação. Se sentir algum movimento inesperado – por exemplo, as costas de um ginasta se arquem um pouco mais do que o normal durante a libertação das barras – o cerebelo rapidamente envia uma mensagem para a medula espinhal, que então ativa reflexos que ajudam o corpo a ajustar-se.
É assim que ocorrem os twisties. “Há uma dessincronização entre o corpo e a mente, quando o corpo não está a implementar o modelo interno [modelo memorizado] que é iniciado e por algum motivo é interrompido porque faz uma coisa diferente daquela que o programa motor lhe diz para fazer. Caso a rotação que está a acontecer caso não coincida com o modelo mental, este tenta fazer adaptações que resultam naqueles movimentos esquisitos”.
“Pânico”
Este fenómeno também é muito frequente na modalidade de trampolim. O ginasta André Lico, bicampeão do mundo de duplo mini trampolim em 2009 e 2010, também já enfrentou situações semelhantes à ginasta americana. “Há um processo de aprendizagem de saltos, e não estamos a falar de um ou dois saltos, é uma grande quantidade de piruetas e mortais que temos de conjugar e o que acontece é que [os twisties] fazem quase esquecer o movimento de rotação, fazem com se bloqueie e não consigamos fazer nenhum tipo de salto”.
No caso do atleta português, não conseguia entrar para os saltos: “Eu bloqueava completamente. Tudo o que se aprende… é como se estivéssemos a andar e de um momento para o outro nos esquecêssemos de como fazer o movimento de andar. Os trampolins são feitos com altura e eu tinha medo de saltos alto. Comecei a ganhar esse medo [após anos a treinar a modalidade], entrava em pânico e não conseguia fazer salto nenhum. Foi um processo de recuperação de um ano. E depois, também, entra a parte psicológica, se a vida pessoal não está bem ou algo nos preocupa a vida desportiva é afetada.”
É precisamente a pressão ou os elevados níveis de stress e/ou ansiedade que criam as condições perfeitas para os twisties e deixam os atletas em perigo, uma vez que o controlo do corpo está limitado e a queda pode descontrolar-se.
Embora o risco seja maior na ginástica, atletas de outros desportos também são afetados pela perda de controlo do corpo e dos movimentos. No voleibol e no golf, por exemplo, os yips fazem com que o atleta sinta que, por algum motivo, perde o controlo do movimento.
Pensar com o corpo
O professor de Psicologia do Desporto é apologista, no entanto, de outra teoria para explicar este fenómeno – a teoria ecológica. “As atletas pensam com o corpo, o que chamam de embodied cognition, e todo o corpo é inteligente e não apenas uma parte do corpo (cérebro) que comanda outra parte (músculos). Os atletas são criativos, estão a fazer coisas que não foram programadas antes, encontram soluções fantásticas na adaptação ao contexto e esta perspetiva ecológica diz que nós pensamos com o corpo, ele próprio é um agente de conhecimento”.
Ariana Guerra, uma ex-ginasta dos EUA, viu a sua carreira afetada pelos twisties ao deixar de conseguir realizar, por exemplo, uma pirueta sem se torcer de forma involuntária. Para conseguir realizar um flip no trampolim, a única forma de o corpo não se contorcer era agarrando as mãos com força. Esta situação começou a afetar o seu desempenho e o medo de que os twisties começassem a interferir na sua performance, noutros aparelhos que não o trampolim, passou a dominar os seus pensamentos.
Ambas as teorias são científicas, mas explicam de formas diferentes o que acontece com os ginastas. “Existe uma variabilidade no processo que permite estabilidade no output [resultado]. Enquanto a explicação anterior diz que estamos a implementar um programa que deve correr sempre daquele modo e a variabilidade é sempre erro, esta diz que não, diz que a variabilidade permite acomodar as variações do indivíduo e das circunstâncias (chão mais ou menos elástico) que permitem atingir o objetivo final. Então o que se descobriu é que, mesmo que os gestos que os atletas fazem durem pouco mais do que meio segundo, os movimentos que fazem dão-lhes uma informação muito importante que é o tempo para contacto”.
O tempo que se leva a alcançar o solo (tempo para contacto) é específico de cada salto e não é algo memorizado internamente. “O que se descobriu nesses casos é que as variações do tempo é que fazem com que as rotações mais cedo ou mais tarde permitam ao atleta realizar o seu exercício com o máximo de pontuação. É uma informação do exterior, o tempo que leva a chegar ao solo ou agarrar a barra ou a distância a que está de aterrar”, explica Duarte Araújo. Depois, o que pode gerar a sensação de descontrolo é um fator externo que prejudicou a perceção do tempo que o atleta ainda tem até alcançar o solo. “Imaginemos que a Biles está no ar e em vez de ir monitorizando o tempo que ainda tem, consoante os movimentos que vai fazendo, ela pensa ‘e se a América não ganhar?’. Estas ligeiras distrações em milissegundos fazem perder a informação ambiental que regula o movimento e é aqui que o twistie surge”.
Para os atletas, o perigo surge neste momento, uma vez que à velocidade a que vão podem magoar-se de forma grave caso surja um problema no desenrolar do movimento. No caso concreto de Simone Biles, a própria referiu que o estado da sua saúde mental estava comprometido há meses, devido à pressão, ao confinamento e o adiamento dos Jogos Olímpicos de 2020. Esse estado mental fez com que durante a prova perdesse “a referência do lugar onde está no espaço, o tempo que tem para chegar ao solo e então pode ser perigoso, porque sem referência não sabe como vai controlar o movimento”, conclui o especialista em Psicologia do Desporto.
O processo de recuperação para que o atleta volte a ganhar confiança nas suas capacidades pode ser longo. No caso de Ariana Guerra a única forma de combater os impulsos e tentar controlar os twisties foi treinar como se estivesse a iniciar a modalidade e apenas fazia cambalhotas à retaguarda, na esperança de recuperar a sensação de rotação sem acabar a girar sobre si própria.
“Demorou cerca de duas semanas para recuperar e eu estava no meio de uma preparação para uma competição importante” disse Ariana ao The Washington Post.