Chegaram à calçada, provaram o vinho verde, tropeçaram nos azulejos, ouviram Amália e aprenderam uma palavra intraduzível que serve para tudo: saudade. No álbum 41, “Astérix na Lusitânia”, Fabcaro (argumento) e Didier Conrad (desenho) fazem dos clichés portugueses um parque de diversões: mordaz, terno e muito divertido. É curto? É. Mas é também a homenagem mais “ó pá” que Portugal podia pedir.
Uma Lusitânia de azulejo e punchline
Começa logo na capa: calçada portuguesa trabalhada com o esmero de um calceteiro perfeccionista e a promessa de que Lisboa (perdão, Olissipo) vai ser o grande palco. O pretexto narrativo é tão clássico como um brinde “in vino veritas”: Malmevês, pequeno produtor de garum artesanal, é preso numa intriga digna de conferência de imprensa — com “linguagem de agência” e passwords impossíveis — para favorecer o magnata Lupus (olá, Berlusconi-do-além). Astérix e Obélix rumam ao Tejo para salvar o homem e, no processo, espremer a nossa identidade até sair uma piada.
Saudade: a poção mágica lusitana
Fabcaro percebeu o essencial: em Portugal, a alegria é melancólica e a tristeza tem ritmo. Há uma fadista chamada Amália a cantar “Estranha Forma de Vida”, há uma rapariga chamada Saudade que parece ter nascido já em modo refrão, e há romanos em plena crise existencial quando Obélix decide… cantar fado. “De repente, sinto que não sou nada”, entoa-se, e legiões inteiras descobrem o vazio, que rende gargalhadas muito cheias.
Ó pá, azulejo, bacalhau e ProtoGalp
A lista de referências é um rodízio: bacalhau a todos os molhos (literalmente), pastéis de nata atirados como munição, vinho verde que “puxa ácido”, calçada em grande plano, azulejo por todo o lado, um posto ProtoGalp a dar abastecimento à graça e um eléctrico XXVII (o nosso 28 com toga) a chiar pelas colinas. Até a secretária do governador se chama Benfica, e num largo há um piscar de olho a CR7 (discreto, que os direitos de imagem não são brincadeira).
Viriato, os traidores e a velha arte de sermos nós
Há história, sim senhor. Viriato é lembrado como grande chefe e, claro, recupera-se a tríade dos traidores, tradição que passa “de pai para filho” (ninguém disse que a auto-ironia não dói). Olissipo surge como maior porto comercial romano: garum, sal, vinho, cavalos, e os tanques das ruínas de SolTroia piscam-lhe o olho arqueológico. O álbum diverte-se a fazer de Portugal aquilo que adoramos ser: improvável, contraditório e simpaticamente absurdo.
Política, PSI-XX e franceses de autocaravana
Entre banhos de turismo de massas, franceses autocaravanistas que resmungam da reforma e um governador Interêsseirus que dá orgias corporativas com o banqueiro Credissuix e o empresário Donodistotudus (lista VIP do PSI-XX — Pessoas Socialmente Influentes), a sátira dá-nos aquele sabor de casa: reconhecemos tudo, rimos de tudo, e no fim brindamos. Há ainda uma prisão política onde se ouve “O povo unido jamais será vencido”, uma sigla MCMLXXIV a lembrar o 25 de Abril, e o veredicto de Obélix sobre a dieta local: “Peixe seco, vinho ácido… estes lusitanos têm um problema com a alimentação.” O leitor, por sua vez, tem um problema com o riso: não consegue parar.
Conrad à altura da calçada
Didier Conrad continua a proeza de ser Uderzo sem deixar de ser Conrad. Linhas redondas, ritmo, slapstick impecável, um desenho que ilumina as fachadas coloridas e os pregos da calçada com um carinho quase arqueológico. A cidade vive, os figurantes respiram e Ideiafix fareja piadas.
Curto? Sim. Bom? Também.
Como todos os álbuns de viagem de Astérix & Obélix (Cleópatra, Hispânia, Normandos, Godos, Bretões, Belgas, Córsega, a Grande Travessia, entre outros), este não inventa a roda do menir: dá-nos 48 páginas bem temperadas, piada sobre piada, é uma espécie de guia sentimental da Lusitânia (Portugal), a meio caminho entre o postal ilustrado e a crónica mordaz. É curtinho? É. Mas também é certeiro, afetuoso e muito nosso. E quando os gauleses se despedem, ficamos com aquela sensação tão portuguesa: saudade do que acabou… e fome do que vem a seguir.