Com a fachada ainda em manutenção, a entrada no Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) faz-se pela lateral do edifício, numa porta destinada aos artistas. Cá fora, o ambiente é de agitação e, de cigarro em cigarro, os trabalhadores partilham o cansaço, preocupações e expectativas. Preparam um novo palco para o teatro, uma estrutura em altura que permitirá acolher em cena um maior número de cantores, preservando assim a distância entre todos. Enquanto a montagem decorre, imagens do projeto final rodam entre mãos, telemóveis e computadores. O comprometimento é tal que se fala em apenas seis dias para deixar pronto este palco vertical.
Ao entrarmos, o silêncio expectável de uma sala de espetáculos é perturbado, não pelas palmas dos espectadores, mas pelas brocas e martelos, pelos gritos e indicações de quem coordena a obra. Neste dia, o cenário é de tal forma atípico que até o enorme lustre se encontra no chão, bem no centro dos 300 lugares vazios, como se a sala tivesse sido abandonada.
Contudo, no fundo do palco, uma estrutura metálica em constante desenvolvimento destaca-se pela sua irreverência. Cresce a cada minuto, enquanto vigas e plataformas metálicas são erguidas à mão, criando o dito palco vertical. Ao todo, são sete toneladas de metal, 8 metros de altura e 35 metros de comprimento, os materiais que integram esta estrutura inovadora – nunca antes vista num teatro, em Portugal. O diretor técnico, Carlos Ramos, explica que é a única forma de garantir a presença simultânea da orquestra e do coro, em palco, com os distanciamentos necessários, é através desta plataforma em meia-lua.
Desenhado pelo cenógrafo Fernando Ribeiro, o novo palco terá quatro andares e albergará um total de 48 coralistas (12 por andar), divididos por finas paredes de acetato. Será forrado a toda a volta por placas de acrílico – tudo para evitar contágios. Desta forma, estará garantida a segurança do coro, bem como a da orquestra, que se encontrará à frente da estrutura. O palco será de tal forma grandioso que a própria cortina de ferro será elevada três metros para que o público consiga visualizar toda a atividade que nele decorre.
Mas como surgiu esta ideia? Elisabete Matos, diretora artística do TNSC, afirma que, quando se viu confrontada com as dificuldades levantadas pela pandemia, teve de pôr à prova o seu engenho para encontrar soluções e não parar de trabalhar. Esta motivação, acrescenta, deveu-se não apenas à vontade de continuar a apresentar espectáculos ao público, mas também à responsabilidade de dar trabalho a dois corpos artísticos fixos do teatro, os quais, juntos, somam mais de 150 pessoas (os 66 coralistas e 88 músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa). “A cultura já é vista como o parente pobre da sociedade e, neste momento, há muita gente a precisar de trabalho”, diz Elisabete Matos. A seu ver, tudo tem de ser feito para que não existam encenadores, atores ou guionistas parados em casa.
Por ora, a estrutura desenhada pelo cenógrafo Fernando Ribeiro está nua, desprovida de toda e qualquer decoração ou harmonia com a arquitetura do TNSC. Tem apenas três andares constituídos de vigas metálicas e, na verdade, parece uma intrusa, no ambiente envolvente do edifício. Quando a obra estiver terminada, Elisabete Matos garante que todos ficarão orgulhosos pelo feito. O palco será revestido com o mesmo material da concha acústica, ficando assim camuflado. Para além disso, o material também amplificará o som – e ainda permitirá combater a barreira sonora das placas de acrílico que estarão em frente aos coralistas. A próxima temporada do TNSC já está organizada e, em breve, será anunciada. “A vida humana sem aquilo que nos nutre a alma é um vazio, e esse vazio também cria a doença. A arte é património da humanidade e é um bem maior”, remata a diretora artística. E, se a solução estiver à distância de um palco em altura, venha ele!