“Estive sempre ao lado da minha vida distraidamente longa. Nunca estive atento. Vendo bem, vivi em dois registos. Como se a minha vida real não me dissesse respeito. Sempre a fingir que não estava lá, para não estar onde estava. No fundo, sou pouco sério”, reflete, em voz alta, Eduardo Lourenço, fazendo-me lembrar certo passo de uma das nossas conversas anteriores, de muitas horas.
“Tenho uma grande memória do simbólico. O meu mundo real é o mundo da poesia e da ficção. Há um diálogo constante com o que leio ou li. Com os livros e as personagens. São a minha família secreta.”)
“O que não aparece no que escrevi – continua agora – é o outro lado da pessoa que sou, que gosta do mundo e da vida, em estado de eterno enamoramento e com uma infinita curiosidade por tudo.”
Desta vez estamos em Vence, na pequena vivenda entre árvores e flores escondida atrás de uma sebe alta de 50 ciprestes que ele próprio plantou:
– Foi a única coisa que verdadeiramente eu fiz em toda a minha vida. O que eu suei! Pensei que morria…
Lourenço e sua mulher compraram a casa em 1974, após nove anos de Nice, ali a 20 quilómetros, em cuja Universidade ambos ensinaram. Desde então vivem nela, agora sozinhos, com os Alpes Marítimos atrás, em fundo distante, separando a França da Itália, e o mar em frente, lá ao longe.
– O Eduardo dizia: eu ainda fico aqui, debaixo do último cipreste que plantar, recorda Annie.
A casa fica afastada do centro da velha cidadezinha de apenas uns 12 mil habitantes, na Avenue de Provence, n.º 1130, exatamente a distância em metros da primeira rotunda após a ponte pela qual se chega também, ali perto, à bela Capela dos Dominicanos, toda pintada e decorada por Matisse. Avenida? De facto uma estrada quase estreita, sem passeios, com vivendas espaçadas de ambos os lados e árvores frondosas, sobretudo acácias floridas. E, este anos, com muitos melros a cantar.
O homem que mais e melhor tem pensado Portugal faz esse caminho todos os dias, uma ou duas vezes, a pé ou ao volante do seu pequeno Opel Corsa, de que Annie é mais habitual condutora. Deita–se tarde, levanta-se cedo, começa, logo de manhã, por ir comprar jornais e revistas. Lê tudo, ainda que sem a voracidade com que lê o que lhe chega de Portugal: VISÃO, Público, JL – Jornal de Letras, Jornal do Fundão, mesmo alguns periódicos locais.
Fora do País desde 1953, nunca saiu dele e aceita todos os convites para fisicamente voltar. Penso nisto, é um dia, 8 de Maio, de intenso céu azul, muito característico da Provença, Eduardo pede a Annie para ver de novo se o correio já chegou. Annie lembra-se que é feriado (Dia do Armísticio), e ele mostra-se desalentado:
– Há 50 anos que esta é a minha hora suprema. Espero o correio como quem sempre espera qualquer coisa que mude a sua vida. Como quem espera o Messias!
É pelo correio que há meio século lhe chega o Portugal de que nunca saiu e afinal fica tão longe daquele silêncio e daquele isolamento vizinhos da solidão. Os pais, sua presença/ausência, e a infância sempre foram e hoje ainda são mais uma constante no sentimento e na reflexão interior do Poeta-Filósofo que também é. A família, da pequena aldeia de S. Pedro de Rio Seco (Almeida, Guarda), onde Eduardo Lourenço de Faria nasceu, era pouco mais do que pobre.
Filha de um “lavrador que teria sido tecelão”, a mãe, Maria de Jesus, de uma “profunda religiosidade”, sincera e rural, marcou-o com a presença. O pai, Abílio, também o marcou, mas mais com a ausência. Oriundo de Lagares da Beira, filho de um pequeno comerciante de prole numerosa, a falta de recursos obrigou-o a alistar-se como voluntário na “tropa”, em vez de ser médico como pretendia. Quando Eduardo, o mais velho dos sete filhos, andava só no 1.º ano do liceu da Guarda, partiu para Moçambique, onde ficou meia dúzia de anos longe da família, para a poder sustentar.
“Nunca houve entre nós essa relação íntima, secreta, que há entre um pai e um filho”, diz-me. E numa pungente página do seu Diário inédito, publicada no último JL – Jornal de Letras, começa por escrever:
“Em minha casa cada qual arrasta a sua ternura familiar numa solidão perfeita.”
Nas nossas três longas conversas, ao longo do tempo, de que guardei registo, o tema aflora com alguma frequência. Em 1996, depois de ter sido o primeiro ensaísta a ganhar o Prémio Camões, justíssima consagração do criador que também é, quando falávamos dos seus primeiros escritos, de súbito fez uma pausa no seu torrencial e luminoso discurso, uma sombra se insinuou no rosto e disse-me:
– Só Deus e Freud é que devem saber porque escolhi o nome literário de Eduardo Lourenço. Talvez porque estava impregnado dessa ideia dos Lourenços. Hoje penso nisso com alguma melancolia. Ou com algum remorso.
Magia do cinema e prazer do ‘paleio’
Depois da escola primária em S. Pedro e do 1.º ano do liceu na Guarda, vai para o Colégio Militar – “como podia ter ido para o Seminário”. São seis anos, dos 11 aos 17, interno, no que considera “um buraco negro” de que não gosta de falar, embora se recorde que a sua primeira nota a Filosofia foi um 0 (a final foi 19) e que “arquitetava ficções, romances históricos”.
– Um tipo do meu género engaiolado! Não era e não sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta só contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestatário. Mas a lembrança mais dolorosa é a de ficar no Colégio durante as férias da Páscoa. Em vez dos habituais 400 alunos restavam uns 20, como que excluídos do estatuto da maioria. Sentia uma espécie de abandono, que me pode ter marcado. Já a maior alegria era ir ao cinema, na Amadora, com os meus tios.
Esta foi, para o jovem Eduardo, uma das “maiores descobertas da [sua] vida: a da magia do cinema”. Que continua a ser um dos seus grandes interesses.
Lourenço é uma espantosa e humaníssima máquina de pensar criadoramente. Com um fulgor de inteligência, imaginação e intuição, uma capacidade de relacionamento e metaforização, uma natural ironia e auto-ironia, uma expressão envolvente, a que não falta nem o achado de linguagem nem a inesperada/inspirada saída fora dos cânones – absolutamente fantásticas. Por escrito ou às vezes, ainda mais, de viva voz, à conversa com os amigos, em conferências, lições, intervenções que em geral não prepara muito, nem precisa, limitando-se a umas notas escritas na sua letra minúscula e cada vez mais impercetível. O que significa que boa parte da sua obra ficará inédita…
– Do que eu gosto é de paleio… Passei a primeira parte da minha vida nos cafés a palear, fornecendo matéria para alguns camaradas e outros ouvintes escreverem o que eu dizia. Se tivesse continuado em Portugal acho que não tinha escrito nada. E se tivesse nascido milionário seria pior do que o Mandarim do Eça…
Cada pergunta ou observação que se lhe faz é pretexto para longas falas admiráveis, nas quais a sua excecional cultura é sempre um cais de partida, nunca um ponto de chegada. Assim, ouvi-lo é deslumbrante; entrevistá-lo, impossível. No sentido ou com a técnica tradicionais, já se vê.
O que sublinho porque estávamos a falar do adolescente Eduardo, fardado de Menino da Luz, e de cinema – o que de súbito o leva a evocar uma “América mítica, uma fabulosa fábrica de propaganda, não ideológica mas do modo de vida norte-americano”. A saltar daí, com pertinênciae fulgor, para outra coisa, a assinalar que “o Império americano começou por ser construído através do cinema” e avançar pelo Império até chegar à invasão e ocupação do Iraque.
Quando faz um breve silêncio, não aproveito para pôr qualquer questão, não quero nem ouso interrompê-lo, sei que vai continuar seu alto voo, não sei é para onde. Estou ali mas, para ele, o gravador é como se não estivesse, constante e instintivamente afasta o pequeno microfone, eu volto a aproximá-lo e ele a afastá-lo, não saímos disto.
– O Cinema da Amadora foi a minha primeira catedral. Não uma igreja, nem uma anti-igreja, mas uma catedral, onde vivi os mais exaltantes, os mais sublimes, momentos da minha adolescência. Para mim havia então dois Portugais: um dentro do cinema, outro fora dele. Aquilo era o céu, o moderno sobrenatural, e ao pé dele qualquer outra forma de religiosidade empalidecia.
Coimbra, Torga, ‘Heterodoxia’
Terminado o Colégio Militar, com boas notas, o destino de Eduardo foi Coimbra. Chegou a frequentar os preparatórios de Ciências, que lhe dariam acesso à Escola de Guerra, a que estava destinado. Mas começaram a cantar outras sereias, entre elas a primeira de uma série de paixões “de caixão à cova, uma coisa tipo Dante”, com uma “menina lindíssima” da sua terra que morava em Coimbra; a última dessas paixões foi a da jovem a quem dedicou Heterodoxia I – outra história por contar.
– Vendi as sebentas logo no fim do primeiro período e passei o ano inteiro na Biblioteca a ler Nietzsche e outros filósofos. Tinha 17 anos e uma grande curiosidade por temas que visivelmente estavam fora do meu alcance e por isso me pareciam misteriosos. Descobri também a Revista de Portugal, dirigida pelo Nemésio, que foi a minha iniciação, o meu primeiro contacto com os escritores vivos: até aí pensava que os escritores estavam todos mortos…
Fez então novos exames de aptidão, reprovando no de Direito e passando no de Letras. Foi, então, para Histórico-Filosóficas – “por ser o curso para que iam os que não tinham mais nenhum sítio para onde ir, e porque aquilo de que sempre gostei mais foi de História”.
Não gostando da “atividade política” em meados dos anos 40, estava na tropa em Mafra, entendeu que era altura de agir. Ouviu falar da existência de um Partido Socialista, liderado por Ramada Curto, popular advogado e dramaturgo, e resolveu “alistar-se”:
– Não estive com meias medidas, mandei-lhe uma carta. Ramada respondeu-me, de uma forma muito engraçada, pedindo-me para me ir encontrar com ele, na Brasileira. Fui e disse-me que o partido era só ele. Se eu quisesse entrar, passávamos a ser dois…
Quase três décadas depois, Mário Soares convidou-o para a fundação do PS. Lourenço não aceitou, embora manifestando-se solidário. Mas não concordava com a parte do programa relativo à independência das colónias: com a independência sim, mas não com a forma muito esquemática como a questão estava apresentada, a realidade era muito mais complexa.
Revela-me então que, ainda no Brasil, escreveu um livro de quase 300 páginas manuscritas, sobre essa problemática. Como muitos outros originais seus, nunca foi publicado: antes do 25 de Abril, não era possível; depois, falou dele a Snu Abecassis, quando a Dom Quixote editou Os Militares e o Poder (1975), mas a futura mulher de Sá Carneiro disse-lhe que não valia a pena dá-lo a lume, “porque o problema já estava resolvido”…
O 25 de Abril e o fim do ‘silêncio’
Eduardo descreve, com pormenor e colorido, a sua primeira vinda a Portugal após a Revolução e como a certa altura deu com ele a pensar: “Estão em 1917 e não sabem.” Longe e perto, acompanhou com paixão tudo que aqui se passava, interveio muito e pensa que, em certos momentos, o que escreveu teve “alguma influência”: “Acabou por ser uma Revolução suavíssima, belíssima, nunca houve nada de semelhante na nossa História.”
Foi convidado para a pasta da Cultura, mas não aceitou. E um amigo chegou a mandar-lhe um telegrama a propósito de uma sua hipotética nomeação, que Annie lhe trouxe, “pendurado na ponta dos dedos e dizendo-me, irónica: ‘Mon chère, te voilá ministre’”… Também foi sondado, pelo PRD, em meados da década de 80, para cabeça de lista para o Parlamento Europeu, mas recusou.
Foram anos muito intensos, em que, pela primeira vez, teve intervenção partidária, no PS e na UEDS. Mas isso já é conhecido, como o é a notável obra que, de algum modo fragmentariamente, foi construindo, como ninguém, pensando Portugal, as nossas relações com a Europa e os países lusófonos, em especial o Brasil, como ninguém escrevendo sobre – e iluminando – os nossos grandes autores. Algum reconhecimento público consistente só o começou a ter, porém, muito tarde. E nessa altura houve amigos, sobretudo Vergílio, que lhe falaram de “sobreexposição”:
– Se houve então, e agora pode voltar a haver, uma certa insolação, a verdade é que enquanto outros sempre estiveram na ribalta, eu passei aqui décadas a aspirar litros e litros, toneladas, de silêncio.
Mesmo ao nível das Universidades onde ensinou, os alunos, e a generalidade dos colegas, desconhecia Eduardo Lourenço: ele era apenas Monsieur Faria ou Lourenço de Faria, que dava meia dúzia de horas de aulas por semana e cuja obra ignoravam. Quando ganhou, em 1988, o Prémio Europeu de Ensaio, pelo conjunto da sua obra, um aluno que leu a notícia num jornal veio perguntar a Monsieur Faria quem era aquele… Eduardo Lourenço! Ninguém sabia.
Um livro inédito de poemas
O escritório de Eduardo é um reino em simultâneo maravilhoso e assustador, inquietante. É o esplendor do caos… Milhares de livros numa ordem que só ele sabe, nas estantes, e depois outros tantos pelo chão, em montes, misturados com jornais e revistas em profusão, recortes, folhetos, papéis de toda a espécie. Em cima da ampla secretária, o panorama é o mesmo. Para ali irá, decerto, uma das cartas que hoje, 9 de maio, o correio lhe trouxe: duas páginas inteiras manuscritas, nas quais Dominique de Villepin, o ministro dos Negócios Estrangeiros de França a quem a guerra do Iraque deu projeção mundial, lhe manifesta grande admiração, designadamente pelos seus livros dedicados a Pessoa.
Por quanto tempo o destinatário saberá dessa carta? Não prevejo que por muito… O que não tem importância. Grave é o facto de já ter perdido numerosos textos e se temer que perca muitos mais. Inclusive o seu famoso Diário inédito, que escreve desde (ou pelo menos data de) meados dos anos 40, de forma não regular, e de que, até agora, só vieram a lume muitos poucas páginas.
Quando agora procura as caixas em que o tem guardado não as encontra: “Desapareceram, desapareceram, parece impossível. Mas onde é que eu as pus?”
No dia seguinte, lá ressuscitaram, e o nosso Escritor de Ideias teve a extrema gentileza de mostrar e ler ao repórter, velho amigo, muitas páginas suas – absolutamente admiráveis. E, mais, de lhe ler também poemas. Que, revelação absoluta, não foram alguma coisa de excecional, passageiro, na sua vida. De tal modo que, em 1955, chegou a pensar em publicar um livro. Tenho aqui à minha frente o projecto da página de rosto, apenas com o nome do autor, a data e o título: O Dia e a Noite. Também dos Diário(s) tenho aqui à frente os projetos de títulos e apresentação de um escritor que, como o seu amado Pessoa, podia ter heterónimos. E não terá sido essa a sua intenção inicial? De facto, na página de rosto de um primeiro volume que nunca chegou a sair lê-se: O Livro da Alma/ ou/ A Educação Portuguesa/ de/ Tristão Bernardo – Diário Metafísico/ apresentado/ por Eduardo
Lourenço/ 1952. Ou: Tristão/ Pallhaço do nada. (“Tristão do Tristão e Isolda, de que gosto muito, e Bernardo não do Soares, ao tempo ainda quase desconhecido, mas do São Bernardo”, revela o autor). Já em 1953, havia uma mudança no título, que passou a ser: Tristão ou/ o Livro da Alma
– Diário existencial/ apresentado/ por Eduardo Lourenço. E em 1954 o título era Memorial Romântico.
Mas, agora, Lourenço garante-me:
– Se, se, algum dia o Diário for publicado, será com o título A Casa Perdida. A casa perdida de Deus, da Pátria e da própria família.
Há páginas escritas em folhas de cadernos, amarelecidas pelo tempo, há numerosas agendas, quase minúsculas, onde também escreve ou toma notas. Tudo guardado numa simples caixa de papelão, tipo caixa de sapatos. Que, pelos vistos, de vez em quando desaparece – e pode arder num incêndio ou ser destruída por qualquer acidente.
– Oh Eduardo, devia guardar os originais e as agendas numa caixa forte, digo-lhe eu.
— E quer uma caixa ainda mais forte do que esta?, responde-me de imediato, muito a sério.
É Eduardo Lourenço de corpo inteiro, no seu mundo desconhecido, secreto. Ele e o Outro, Príncipe(s) não da Baviera mas de uma Renascença que não se levasse a sério. Passeando-se, distraído só para o acessório, nas margens fluidas de uma certa genialidade. Tornando-nos melhores. E a Portugal também.
(Reportagem publicada na VISÃO a 22 de maio de 2003)