Esta é uma conversa despretensiosa a propósito e a partir do filme, embora não só sobre ele, filme que tem Eduardo Lourenço como protagonista, parte do seu pensamento e percurso como tema. Uma conversa entre amigos: um, a grande figura da cultura portuguesa que vai completar 95 anos no dia em que, assinalando-os, antestreia o filme, O Labirinto da Saudade; outro, o jornalista que nesse filme aparece referido exatamente como “amigo”, embora a certa altura também faça de “monge”. Uma velha amizade que não tem a ver com o jornalismo, mas acaba por passar muito por ele. Porque, de facto, há décadas Eduardo colabora em jornais ou revistas em que tive ou tenho responsabilidades de direção, incluindo aqui no JL, desde o nº 1. E não poucas vezes fui eu próprio que lhe solicitei/sugeri certos textos, embora só sobre o que sei ou imagino ser-lhe caro escrever, e sem nunca o forçar, insistindo demasiado – ‘lembrando-lho’, sim, por ser isso indispensável, quando promete fazê-lo…
Em matéria de entrevistas temos também, aliás, uma já antiga relação: longas conversas que dececionantes ‘desastres’ técnicos impediram tivessem correspondente expressão escrita, mormente num livro que o Guilherme Valente queria que eu fizesse para a sua Gradiva. Desta vez, isso esteve uma vez mais quase a repetir-se, mas salvou-se o que de seguida se pode ler. Uma explicação suplementar: na conversa falamos mais sobre o filme; mas entretanto chegou-nos o registo dos comentários que, espontaneamente, Eduardo Lourenço foi fazendo quando viu – e só viu uma vez – uma primeira versão do filme, comentários gravados pelo realizador Miguel Gonçalves Mendes. Assim, pareceu-me muito mais interessante dá-los aqui a conhecer, em caixa, retirando da entrevista o que eles tornavam desnecessário ou pleonástico. Obviamente, a publicação de tais comentários é feita com o conhecimento e a concordância do seu “autor”.
Como reagiu à ideia de fazerem este filme, quando dele lhe falaram pela primeira vez?
Não percebi bem o que pretendiam. Em que águas me ia meter, que rio ia percorrer com pessoas minhas amigas ou que me conhecem e com as quais iria dialogar a propósito dessa peripécia que é sempre uma vida.
Mas aceitou.
Conhece-me muito bem, sabe que um dos meus defeitos, talvez o maior, é não saber dizer que não… Sobretudo aos meus amigos, quando me pedem ou esperam que faça alguma coisa.
Às vezes parece-me que lhe é ainda mais difícil dizer que não aos desconhecidos, mas adiante. Está no filme…
… a fazer de ator, coisa de que ninguém precisa de fazer, porque todos o somos, uns bons, outros maus – e eu sou dos maus.
O Eduardo não é o ‘ator’, mas o sujeito do filme, que é sobre si e o seu pensamento, a sua visão da história e do destino de Portugal.
Provavelmente será essa a intenção das pessoas que pensaram e decidiram fazer o filme, e dar-lhe o título Labirinto da Saudade. Eu não tenho leitura, ou dupla leitura, desse facto. A certa altura do meu percurso, se há percurso, foi efetivamente minha preocupação fundamental saber que país somos. E essa é, aliás, uma pergunta que vem da dos nosso maiores, incluindo o Antero e a geração de 70: como foi possível um país tão pequeno ter tido um percurso tão extraordinário? A dado momento da História do Ocidente, fomos nós que levamos o Ocidente para o Oriente. Hoje vivemos isso uns em termos dramáticos, outros como uma coisa natural. Acho fantástico haver portugueses que não se admiram de nada, do bem, do mal ou do aproximado, e fazem corpo com o que está à volta, utilizando-o do modo mais feliz possível.
No prefácio a uma reedição do Labirinto, datado de Vence, 25 de Abril de 1978, sublinha que não escreveu esses ensaios “para recuperar um país que nunca perdi, mas para o pensar com a mesma paixão e o mesmo sangue frio intelectual com que o pensava quando tive a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro da alma”.
As ideias do livro estão ligadas aos meus interesses de ordem filosófica quando mais jovem: o tema essencial é a problemática do tempo, que se pode ver e tratar de muitas maneiras, sendo a saudade uma espécie de vivência da temporalidade que sentimos de forma muito particular. Um tempo não de tipo cartesiano, de instantes que se sucedem e formam uma coisa lógica, mas antes alguma coisa que volta sobre si mesmo. Na saudade nós recuperamos o que em princípio devia ser irrecuperável – e é por isso que nos reconhecemos nessa espécie de sensibilidade que pensamos identitária e nos preocupamos muito com o sentido da vida em geral e o do tempo em particular.
Ainda quanto ao filme, qual a sua opinião sobre a rodagem, o que representou para si essa experiência?
Eu só tenho opiniões a título póstumo… Uma vez as coisas realizadas é que me dou conta do que de insólito, até de inaceitável para muitas pessoas, pode haver no que faço. Algumas ficarão até convencidas tratar-se, o filme, de um ato de autonarcisismo, embora de narcisos tenhamos todos alguma coisa…
… ou ainda menos, diria o Cesariny…
Nós viemos ao mundo para fazer ‘figuras’ de todas as maneiras, incluindo as eventualmente tristes (risos).
Bom, mas eu pergunto-lhe é sobre a experiência concreta das duas semanas de filmagens no Hotel do Bussaco e das outras posteriores.
Isso dava um filme no filme propriamente dito. Era tudo sempre uma surpresa, pelo menos para mim. Não sabia o que se ia passar, do que ia falar, como se fosse uma conversa de café, com grande complacência dos meus amigos, sobre os temas mais diversos. O onírico foi tudo que lá no Bussaco se passou.
Além da poderosa imaginação do Miguel, parecia haver uma grande dose de improviso?
Para mim tudo improviso, no sentido mais óbvio do termo. E uma aventura. Uma aventura sobretudo para uma pessoa, como eu, que nunca procurou a ribalta nem gosta dela.
Viu o filme dele, do Miguel, Pilar e José. Que lhe pareceu?
É diferente deste, porque tem grande coerência de imagens e narrativa. O realizador acompanhou durante quatro anos alguém com uma imagem muito forte na cultura portuguesa e um couple fora do comum, uma espécie de resumo da relação sentimental entre Portugal e a Ibéria. De resto, uma das coisas mais interessantes do Labirinto deverá ser aquela aparição da Pilar no seu melhor…
A querer conquistá-lo para o iberismo.
Tentativa gorada, pelo menos por enquanto. Embora eu seja muito ibérico, nasci na fronteira, quando garoto não sabia onde era Portugal e onde era Espanha.
A Pilar utiliza todas as suas armas de sedução e o Eduardo resiste…
É o meu lado beirão. Resistir à figura quixotesca da bela andaluza…
Bom, mas sobre isso a própria Pilar escreve. Entre outras conversas muito interessantes, como a com o Siza, estão algumas com quem não conhecia, como o no Brasil muito popular Gregório Duvivier, da “Porta dos Fundos”, humorista e ator mas também poeta.
São os bons encontros que não estão codificados a priori, em que tudo é surpresa. E esse foi um bom encontro, até porque nós não temos muito relacionamento pessoal com brasileiros representativos. Além disso, obrigou-me a falar do que penso da relação de Portugal com o Brasil, onde fui professor durante um ano, em Salvador.
Voltando a O Labirinto da Saudade, como ponto de partida do filme…
De facto, o essencial do que eu sou, ou do que posso ser aos olhos dos outros, é o que está nesse livro.
Já pelo menos uma vez, porém, me disse, que o livro em que se sente mais presente, que é mais, digamos, o seu ‘romance’, é o Pessoa Revisitado.
Sem dúvida nenhuma. Mas tinha de ser feita uma escolha. E foi de certo modo sacrificado o Pessoa, que é insacrificável. O Pessoa tem uma tal imagem, é um tal ícone da nossa cultura, como não há outro, tirando o imortal Camões, que não quis entrar na sua senda. Das mais perigosas e impercorríveis, porque um simples poema seu resume uma aventura cultural e poética sem confronto com qualquer outra nossa contemporânea. O Pessoa dá a impressão de não ser ele que está em pauta, serem os outros. O que não é verdade: ele está sempre em pauta, como ninguém, se assim não fosse não estaríamos agora aqui a falar dele. O Pessoa deixou-nos a ideia que o eu é uma construção contínua e um sonho de si mesmo; levou à letra uma das grandes experiências da visão cultural da Europa em todo no seu esplendor: a vida é um sonho.
Como Calderón de la Barca.
Como Calderón. Pessoa mostrou que a vida dele foi um sonho dominado, que ele fez imaginar outra coisa que sabia complexa, profunda, ingovernável, para sempre fora dos cânones habituais que reservamos para as nossas figuras mais importantes.
Vai fazer 95 anos em grande forma intelelectual, e física também embora se sinta cansado – mas não conheço ninguém da sua idade, nem próxima dela, com tanta atividade… De tudo que fez o que considera mais relevante e pensa pode ficar?
Tenho a impressão que a única coisa que posso reivindicar é a paixão pelas grandes figuras contemporâneas e do passado, as nossas e as alheias; a tentativa de as compreender, não só levando-as a sério como elas obrigam, mas fazendo um esforço para decifrar o seu enigma e mistério. E é a paixão pela poesia enquanto tal, como essência da substância humana.
Embora tenha começado mais, academicamente, pela filosofia.
A filosofia foi provavelmente um combate por mim de antemão perdido. Não totalmente, porque todos nós estamos confrontados, queiramos ou não, com essa questão: quem somos, donde vimos, para onde vamos, o que nos espera. Essas questões formuladas por Kant e por qualquer um de nós que não é Kant…
Para muito do que escreveu, inclusive sobre escritores, poetas, a sua formação filosófica foi importante.
Penso que sim. Dos autores que li, desde a minha vida académica como jovem aprendiz de filósofo, vários filósofos (como Péguy) ficaram sempre balizando muito o meu itinerário pessoal nessas águas profundas da filosofia. Provavelmente demasiado profundas para a criatura ligeira que eu sou.
Falou da sua paixão pela poesia. Mas também a tem pela música. E quanto à pintura, ao cinema…
A minha mulher, a Annie, dizia que eu sou um jouisseur… Gostaria de perceber que espécie de fascínio está presente nessas diversas paixões, no sentido cultural do termo, que ao longo da vida foram as minhas. E gostaria de perceberer o que é que eu vim fazer a este mundo. Não estou certo que possa ter uma resposta satisfatória…
Já teve melhor resposta do que agora?
Agora estou tão próximo do fim que já não tenho espaço para uma atitude lúdica a respeito da minha existência enquanto alguém que quis compreender aquilo que estava à sua volta.
Uma existência muito cheia e com lances que decerto nunca lhe passaram pela cabeça, com este de agora integrar o Conselho de Estado.
Essa, realmente, ultrapassou a minha capacidade imaginativa, ou de sonho…
E então, como é?
Procuro estar atento e nessas altas esferas em que os políticos, que não eu, se movem, aprender alguma coisa que não percebi até hoje, em fim de vida.
Nas reuniões sente-se um estranho, um intruso?
Eu nunca soube muito bem qual era o meu sítio e onde é que estava… Nas reuniões do Conselho de Estado – estou, as consequências não sei.
Mas é uma experiência interessante, não?
Foi e é. Sobretudo agora que Portugal está a passar por um momento simpático, com uma leitura positiva de si próprio, alguns dirão até demasiado positiva. A começar pelo nosso Presidente, que tem essa audácia de dar uma lição de simplicidade a que não estávamos habituados.
E de otimismo também…
Também. Mas o Presidente diz que o primeiro-ministro é mais otimista do que ele. E uqem sou eu para o contradizer?…
Estamos, de certa forma, numa situação e com perspetivas não há muito inimagináveis?
Sem dúvida nenhuma. Estamos perante um pequeno milagre. E não aquele habitual de país que sempre esperou resolver os seus problemas com um milagre sem contribuir para ele de forma eficaz e pensada. Vivemos um momento de autosatisfação ou aceitação do nosso presente e da nossa história.
Isto numa Europa em geral considerada em crise profunda.
Não sou muito crítico em relação à Europa atual e suas perspetivas. Acontece é que a Europa já não está no centro da história universal, como ela se representou durante tantos séculos. Mas continua a ser aquele ponto que não pode ser ‘compensado’ por qualquer outro fora da Europa.
Voltando aos 95 anos, a 23 de maio, alguma vez lhe passou pela cabeça que pudessem ser assinalados com um filme sobre si, com ante-estreia no Grande Auditório da Gulbenkian – e o mais que lhe estará associado?
Nem quero pensar nisso… Não é que esteja com pânico de ser manipulado, mas de facto, repito, custa-me estar na ribalta. Se eu ainda fosse um ator, um grande ator, como o Clint Eastwood, que aparece e todos só têm olhos para ele (uma pessoa sozinha pode ser o cinema inteiro, como é o seu caso). Mas eu não tenho essa vocação, poderei ter uma certa vocação mas é do silêncio, que corresponde à minha expressão natural.
Embora o cinema sempre lhe tenha interessado muito e escrito sobre ele, já mesmo no JL publicamos inéditos seus sobre filmes.
Escrevi alguma coisa, não tanto como devia ter feito. Eu, como todos da minha geração, cresci com o cinema, nas décadas de 20/30. O advento do cinema sonoro foi dos acontecimentos mais importantes do século XX. E estou talvez mais familiarizado com o cinema do que com qualquer outro meio de expressão
Porquê?
O cinema é o que mais caracteriza a modernidade. A imagem que nós temos da experiência humana no século em que vivemos é fundamentalmente a que o cinema transmite. Não é a única, há outras expressões, incluindo a música, com a qual aliás o cinema tem uma conexão quase visceral. Somos levados a aceitar que o cinema é como que uma espécie de comentário divino aquilo que se passa e ultrapassa a margem dada pela transcendência da música enquanto tal.
A ideia de morte está-lhe muito presente?
Quem me ler com atenção, e alguns o têm feito, percebe que na minha espécie de prosa, um pouco pretensiosa e poética, o único tema verdadeiramente sério é a morte. Para mim e para toda a gente, tirando aqueles que têm uma paixão negativa em relação a ela, aceitando para si mesmos um fim trágico para aquilo a que chamamos a vida. A morte é consubstancial à vida.
Mas a Annie dizia: “O Eduardo vive como se fosse eterno”…
Eu pensava, melhor: desejaria que isso se tivesse aplicado a ela. No filme não quis focar essa espécie de saudade revivida, pelo que isso tem de naturalmente definitivo e doloroso. Porque a Annie não estar comigo é um facto consumado sem leitura possível. É um buraco negro numa existência antes do seu próprio fim.
Um buraco negro porque ausência do que lhe foi luminoso.
A luminosidade vem desse encontro que tive com alguém que não era previsível no meu trajeto de pequeno português da província. Um encontro não a titulo mítico, retórico, mas com a França real – a Annie era muito francesa no sentido positivo, claro, luminoso, de uma cultura que nos foi sempre uma referência histórica fundamental. E hoje vivo aqui nesta solidão.