“Ninguém manda no tempo. Nem no coração”. O aforismo aparece logo na capa do seu novo livro, A Desordem Natural das Coisas (ed. Clube do Autor, 240 págs. €16,50), e faz sentido que ali esteja. Mantendo como tema o mito da Penélope, Margarida Rebelo Pinto traz um romance em que só o artifício de um tempo paralelo salva a mulher que espera do natural desespero. Um exercício narrativo que deu muito gozo à escritora e cria alguns momentos “aha!” a quem a lê.
Proponho um exercício para início de entrevista: o que é para si o amor?
Não há pergunta mais difícil. Ando há duas ou três décadas a ler sobre o amor, sobre a química do amor, os tipos de amor… Vou responder de acordo com a linha de pensamento do meu filósofo atual preferido que é o Alain de Botton, a quem chamo de filósofo do bom senso. Ele diz que o amor é aceitarmos as pessoas exatamente como elas são, não as tratarmos como nós gostávamos de ser tratados mas como elas gostavam de ser tratadas, e amar o nosso marido ou o nosso namorado como tratamos os nossos filhos: com toda a complacência e com toda a paciência [Ri-se]. Eu não concordo em tudo com o Alain de Botton mas não estou longe.
As suas personagens vivem nele e para ele. Devemos alimentar-nos do amor e das relações amorosas?
Não, porque podem tornar-se rapidamente processos autofágicos e destruidores. A questão é que o amor romântico – e não falei nele logo na primeira resposta porque estou em fase queirosiana, ou seja em fase realista – foi sobrevalorizado, com todos os defeitos e problemas que acarreta. O amor romântico fragiliza as mulheres, desculpa os homens, vitimiza todo o processo e torna as relações doentias.
Mas escreveu sempre coisas muito românticas.
Sim, sobretudo ali numa fase mais aguda, na altura do Diário da Tua Ausência. Hoje em dia já estou um bocado afastada dessa linha de pensamento mas costumo dizer que a ambivalência é o meu nome do meio – às segundas, quartas e sextas tenho uma visão muito racional e às terças, quintas e sábados tenho uma visão muito romântica. É como se estivesse no Ilhéu das Rolas – uma perna está acima da linha do Equador e a outra está abaixo.
Viver sem amor é possível?
Não. Há é muitos tipos de amor e por isso é que quando os filhos saem de casa, as pessoas têm cães e gatos, ou as que não têm filhos arranjam animais de estimação. A Agustina [Bessa-Luís] dizia uma coisa linda: “É impossível não amar ninguém, não acredito que isso exista”. O Kierkegaard fazia uma coisa engraçada: distinguia o amor preferencial do amor não-preferencial. O amor preferencial é o amor egoísta e romântico por uma pessoa específica, em que pensamos que gostamos muito da pessoa mas o que queremos é viver as sensações e os sentimentos que ela nos dá. O amor não-preferencial é o amor a todas as coisas. O que o Alain de Botton faz, e é interessante, é uma combinação destas ideias todas em relação ao amor.
Com os seus livros quer mostrar o que é o amor aos seus leitores?
Não. Cada livro é um exercício de resposta a dúvidas ou inquietações que eu tenho naquele momento. As histórias servem para responder a mim própria e, através disso, penso que também podem dar respostas às pessoas ou elevar o seu nível de consciência ou ainda, através da identificação, perceberem como se sentem e que não são as únicas a sentir daquela maneira ou a sofrer daquela maneira. Como diziam os Xutos e o meu querido e saudoso Zé Pedro: não sou o único a olhar o céu.
Não pensa em ninguém quando escreve?
Na verdade penso nas mulheres, porque escrevo sempre sobre elas. O que as faz sofrer, o que pode fortalecê-las… e o amor é um bocadinho o caminho. O amor é a minha massa de vidraceiro, é o meu puré de batata – acompanha tudo – mas hoje tenho uma visão cada vez mais metafísica e filosófica das coisas. Estou sempre a estudar e a ouvir filósofos, sobretudo em relação ao amor, porque só há duas realidades incontornáveis na existência: o amor e a morte. Isso não controlamos.
Neste último livro recorre ao artifício do tempo paralelo. É uma maneira de darmos a volta quando as coisas não correm como queríamos?
Claro! Fazer toda uma construção de um tempo paralelo foi um exercício narrativo espetacular, e as pessoas pensam mesmo assim. As pessoas vivem muito a sonhar, o ser humano é um ser distraído, que sonha muito mais acordado do que a dormir (e a dormir nem sequer se lembra da maior parte dos sonhos). Há muitas pessoas que vivem na Terra do Nunca, a pensar: o que é que poderia fazer à minha vida mas não faço.
Por exemplo?
Se ganhasse a lotaria, se tivesse nascido nos Estados Unidos, se me tivesse casado com aquela pessoa em vez de ter casado com outra. A Geração X tem um problema: somos as últimas a acreditar no príncipe encantado. E a Charlotte de O Sexo e A Cidade tem uma frase linda: In the end we all want to be rescued [no final, todas queremos ser salvas]. Só que agora nós somos os próprios dragões. Estamos lá em cima na torre a pedir ajuda mas também estamos cá em baixo porque somos os dragões que enfrentamos e confrontamos quem nos vem salvar [Ri-se]. Há um novo paradigma de mulher que confunde os homens: nós evoluímos muito depressa e eles ainda não apanharam boleia.
O que surpreende mais agora neste livro é o grande recurso a vozes masculinas. O que foi mais difícil neste exercício de pensar e falar como um homem?
Nada, nunca é difícil. Embora a minha aparência física não o indique, em miúda era uma Maria-rapaz. Portanto, passei muitas horas, muitos jantares, só com homens e a ouvi-los a falar de mulheres. E tenho vários amigos homens, profundas amizades castas, que são muito íntimas porque me fazem grandes confidências. Isso ajuda-me a construir as personagens masculinas mas também tenho intuição e muita empatia.
Até a linguagem é diferente, as palavras, o ritmo.
As primeiras vez que fiz vozes masculinas, enviei essas partes a amigos para me dizerem o que achavam. O Pedro Paixão, com quem muitas vezes partilho o meu trabalho, diz que consigo escrever exatamente como um homem. Portanto, neste momento já nem sequer vou buscar validação; simplesmente sai-me. Um escritor também é um bocado um ator, ou seja veste a pele de uma personagem e depois começa a sentir e a pensar como ela. Incorpora.
Isso dá-lhe gozo?
Quanto mais distantes forem as personagens da minha realidade, da minha existência, mais gozo me dão. E este livro é o primeiro em que as vozes masculinas são mais fortes do que a feminina. Para mim, é mais um passo em frente na minha realização como escritora porque até agora estava muito mais no lado das mulheres.
Desta vez, sente que arriscou mais? Ou que tinha finalmente mão para o fazer?
Acho que nunca senti tanto pulso num livro como neste porque não hesitei na construção da história, nem na construção das personagens, só no final. Como tenho um bocadinho de princesa da Disney, ainda pensei fazer um final feliz, mas acabei por fazer um final… feliz doutra maneira. Tento sempre ir o mais fundo possível nas questões que estão ali no livro e neste fui mesmo até ao osso. Em tudo.
E como é escrever sobre sexo? Pergunto-lhe isto porque é precisamente um dos homens que descreve com pormenor o que se vai passando na cama.
Gosto de escrever sobre sexo, ele faz parte da vida.
É diferente ser um homem a falar de sexo?
É um homem apaixonado a falar sobre sexo, e um homem apaixonado e o mesmo homem não apaixonado não são a mesma pessoa. Um homem que não esteja apaixonado jamais falará de sexo como aquele homem fala, é diferente. Aliás, o que eu quis foi fazer o exercício de uma narrativa altamente erótica. Não sei se foi isso que resultou, espero que sim. O erotismo é o sexo com imaginação, o erotismo é que é interessante. E o que dá prazer não é o sexo, é o parceiro com quem temos sexo.
A Margarida está-se nas tintas para moralismos judaico-cristãos?
Desde os 15 ou 16 anos que me estou nas tintas para os moralismos. Não cabe no meu entendimento do mundo e da realidade, e desde miúda que me fazia imensa confusão a história da expiação e da condenação pelos pecados, e o ato da confissão, na religião católica. Isso nunca fez sentido para mim porque ninguém tem o direito de julgar ninguém.
Os seus livros trazem sempre mulheres fortes. É por acreditar que o mundo é nosso?
É porque fui criada por mulheres fortes. Tive duas avós fortes, uma mãe fortíssima e uma irmã e uma cunhada muito fortes. A minha família é uma família de super-mulheres. Fui criada com mulheres assumidamente fortes. Não é aquela mulher dissimuladamente forte que manipula os homens da família para conseguir o que quer. Não. É a que choca de frente e dita as regras. E também fui criada num paradigma, que pensava ser comum e não é: os meus pais são um casal muito feliz, onde a fidelidade, a conjugalidade, a sexualidade e a felicidade estão todas debaixo do mesmo teto, ao mesmo tempo.
Não se apercebeu logo da raridade?
Só com os anos. Por isso é que sofro de “parite” – preciso de ver o mundo aos pares, acho que o mundo só faz sentido se for aos pares. Portanto, se tivesse um cão tinha dois e em minha casa é tudo aos pares: os candeeiros, os castiçais… Tudo.
Qual foi a parte deste livro mais difícil de escrever?
É sempre igual, em todos os livros: o arranque. Chego a começar vários romances, tinha um com 70 páginas que larguei para pegar neste. No meu computador, tenho mais uns três começados que poderão vir a dar alguma coisa ou não. E provavelmente os próximos que vou fazer não vão ser nenhum destes porque entretanto já tenho outro plano na cabeça que são quatro seguidos, uma saga.
E o seu capítulo preferido? Sem spoilers, por favor.
É O Tempo Paralelo porque até eu que o escrevi, quando o reli após umas semanas cheguei ao final e senti que estava a cair de um precipício, que a realidade era um choque. Em termos de construção narrativa, fui mesmo longe, fiquei muito contente com o resultado.
Esconde segredos e private jokes nos seus livros que só algumas pessoas vão apanhar?
Como todos os escritores! [Ri-se] O António Lobo Antunes diz que nós escrevemos sempre para impressionar uma pessoa – e é completamente verdade. Mas sou habilidosa. Faço isso desde o primeiro romance e quando as pessoas me perguntam se certas cenas são verdade, estão sempre a falar de cenas ficcionadas.
“Só o presente interessa mesmo quando ainda não acertaste contas com o passado”. É a rainha dos aforismos, foi sempre assim?
Desde pequenina. Sempre disse aforismos e pus alcunhas às pessoas. Agora até tenho pessoas que têm contas no Instagram com as minhas frases e eu própria fico espantada com a quantidade de aforismos que encontram nos meus livros, até nos infantis.
Os seus livros parecem-me todos ligados. Tem essa de intenção desde o início de construir uma obra coesa ou simplesmente aconteceu?
Tenho um tema de vida – na minha obra há sempre o mito da Penélope, há sempre uma mulher que está à espera. Acho que tem a ver com a minha infância porque passei uns anos doente, tive febre reumática entre os oito e os onze anos, e então projetava a minha vida no futuro. Como não podia brincar nem correr, saltar ou fazer ginástica, aprendi a viver no futuro. “Quando eu puder brincar”, “Quando aprender a nadar”… Programava tudo. Dumbledore, o mago do Harry Potter, diz: “It does not do to dwell on dreams and forget to live” [Não vale a pena insistir nos sonhos e esquecer de viver]. Mas como a vida era muito chata porque tinha de estar quieta, vivia no futuro.
O seu livro de estreia, Sei Lá, foi adaptado para o cinema e este também é bastante cinematográfico. Pensou nessa hipótese quando estava a escrevê-lo?
Escrevo assim. Quando uma pessoa está a escrever não pensa como está a escrever. Aquilo sai e depois podemos bordar mais ou limpar mais, mas há ali uma matriz que é a nossa voz de escritor. Não pensamos, é um processo muito intuitivo.
Há coisas da sua vida que se cruzam com a vida das suas personagens. Quem a segue no Instagram viu-a há uns meses a aprender a fazer arranjos de flores, coisa que a personagem feminina deste livro, a Mafalda, também faz muito bem.
Aproveito muitas coisas da vivência real. Eu estava com o writer’s block [bloqueio do escritor], o que é uma coisa perfeitamente normal ao fim de dezasseis romances e de vinte anos de trabalho, e precisava de uma coisa que me ligasse à vida. Então, lembrei-me de ir aprender a fazer arranjos de flores. Pedi ao Pedro Serra, da Decoflorália, para me dar essa oportunidade porque precisava de temperatura, cor, cheiro, encanto, romance, charme, arte, mexer as mãos. O bom sexo tem isso tudo, mas as flores também [Ri-se] e elas trouxeram-me à vida.
Gostou tanto da experiência que não resistiu a aproveitá-la para a sua personagem?
É muito importante que as personagens tenham pinceladas impressionistas de coisas factuais e realistas, de forma a que os leitores as vejam como pessoas. Elas têm de ter características inesperadas, como todas as pessoas, e têm de ser imperfeitas porque cada uma está na viagem do herói para conseguir ultrapassar as suas fraquezas e conseguir os seus objetivos (que não tem nada de novo, é a da Eneida e da Odisseia). Se acrescentarmos pormenores realistas sobre a vida delas, tornam-se próximas das pessoas.
Ou seja, ganham densidade.
E sentimos o sangue a correr. Quando estou a escrever, tenho de sentir o sangue a correr nas veias da personagem, bum, bum, bum, aquela coisa da artéria, porque se não ela não funciona.
Seria capaz de viver sem escrever?
Nunca.
Mas olhe que há uns meses, foi notícia que a venda de livros em Portugal desceu mais de 20% nos últimos dez anos (menos trêsmilhões de livros vendidos em 2018 do que em 2009). A profissão de escritor pode estar em vias de extinção.
Infelizmente tenho quase a certeza de que sim. Tenho uma visão bastante apocalíptica em relação a isso. Em primeiro lugar, porque a não-ficção está a invadir o terreno da ficção e depois porque tudo o que é físico (e aconteceu já com os DVD e os CD) desaparece e vai parar ao virtual. Tal como acontece com os media, ou as pessoas pagam pelos conteúdos de qualidade ou eles desaparecem. Não sei como é que vamos sobreviver a esta embrulhada em que o Steve Jobs nos meteu.