É já longo o caminho percorrido na história recente da relação entre a música popular portuguesa de raízes tradicionais e a pop. Nos anos que antecederam o 25 de Abril, a releitura dessas sonoridades feita pelos jovens cantautores (José Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco) era virtual sinónimo de música de intervenção em oposição às predileções do Estado Novo pelo fado, o nacional-cançonetismo ou a sua visão das músicas regionais traduzidas nos muitos “ranchos folclóricos”. A queda da ditadura trouxe renovada atenção não só às vozes da revolução, como também às influências a que iam beber. Multiplicam-se os artistas que se interessam pelas mais autênticas raízes da música nacional (Banda do Casaco e Brigada Victor Jara…). O trabalho de recolha etnomusicológico de Michel Giacometti e a obra de Fernando Lopes-Graça adquirem o estatuto de cânone no processo sem fim de redescoberta da tradição portuguesa na música popular.
No último disco dos Sétima Legião (Sexto sentido, de 1999), por exemplo, ecoam as velhas vozes gravadas por Giacometti. João Aguardela foi pioneiro, a partir de 1997, com o projeto Megafone, de remisturas a partir de sons tradicionais, a procurar uma subversão (no seu caso mais ligado à música de dança eletrónica), uma tendência que se manteve século XXI adentro, com diferentes registos.
A VISÃO falou com quatro dos mais recentes projetos a atirar-se à música popular de raízes tradicionais para perceber a que novos caminhos esta relação ainda pode conduzir. Mais do que o ponto de chegada, o que os aproxima é mesmo a crença de que “a tradição está em constante transformação” e a profunda vontade de fazer parte dessa mudança.

Sampladelicos
Marcos Borga
A vitória do sonho
Entre longas viagens pelo País e o estúdio, os Sampladélicos redescobriram a fórmula para dançarmos as nossas tradições
Os Sampladélicos nascem de um sonho cultivado por Tiago Pereira desde pequeno, e que surgiu na forma de um questionamento: “porque é que não havemos de dançar a música patrimonial portuguesa?”. Documentarista e fundador d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPAGDP), portal que arquiva quase três mil registos audiovisuais das tradições musicais portuguesas, Tiago viu a oportunidade de o concretizar ao juntar-se a Sílvio Rosado, músico de formação, na criação de um ambicioso projeto de remisturas. Viu a tarefa facilitada ao constatar, pelo material da MPAGDP, que “continuamos a ter um País naturalmente rico em sons porque continua a haver gente a ir com o gado para o terreno, a lavrar com bois e, assim, a produzir sons dos arados, cangas e madeiras, para além das lógicas percussivas de bombos e adufes” − componentes que, para os Sampladélicos, podiam dar “beats inacreditáveis”. Por cima destas batidas, captadas acusticamente por Tiago e orquestrados por Sílvio, o que encontramos é uma subversão da paisagem sonora campestre de Portugal: o chamamento do pastor e a resposta das suas ovelhas, vozes de velhinhas em loop ou modas entoadas por grupos etnográficos, mas sempre embebidos em reverberação, delay ou algum outro efeito distorsivo. O primeiro disco, Não nos Deixeis Cair em Tradição, de 2016, impõe-se como o seu manifesto de que “a tradição é sempre contemporânea”. “Demorei muito tempo para perceber que o conceito de tradição pode ser uma grande prisão”, explica Tiago. “Por isso é que faço questão de dizer às pessoas que o que fazemos é captar pessoas reais que cantam no sentido primordial, para adormecer o bebé, para parar de chover ou porque estão a lavar a loiça.” Tiago e Sílvio surpreendem-se com o modo como “de repente, essa poesia popular que está a desaparecer põe, em 2017, três mil pessoas que nem sabem o que são décimas a dançar a nossa música como malucas.” E isso, concluem, é uma vitória. “É a vitória do sonho”.

Lavoisier
Marcos Borga
Tudo se transforma
Duas vozes e uma guitarra são o porto seguro dos Lavoisier para assumirem como sua uma herança musical que vem de muito longe
A história da relação de dois músicos portugueses, Roberto Afonso e Patrícia Relvas, com o seu património cultural inicia-se, paradoxalmente, na Alemanha. E isso não foi mera coincidência. “O estar a olhar para o país de fora para dentro, ao mesmo tempo que éramos expostos ao trabalho do Michel Giacometti e do Fernando Lopes-Graça, fez-nos perceber o quão importante eram as nossas raízes para a música que fazíamos”, explicam. “Quando estás em Berlim e ouves uma senhora vestida de negro a cantar ‘minha boca se vai rindo, meus olhos vão chorando’, aquilo transforma a tua vida.”
Assumindo-se, ainda assim, como filhos da sua geração e admiradores da música sem tempo com a qual cresceram − citam, por exemplo, Beatles, Jeff Buckley, Nina Simone ou Elis Regina − e inspirados no canibalismo cultural do movimento tropicalista de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a banda de duas vozes e uma guitarra define-se tendo como máxima a lei de Lavoisier (a célebre “na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”) aplicada à música: “Não é por abraçarmos todas estas influências que vamos deixar de ser portugueses, é uma mais-valia saber aceitar isso e moldá-lo a quem somos”. No ano passado, ao lado do engenheiro de som José Fortes (que trabalhou com José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto), gravaram Projecto 675, uma reinterpretação de temas tradicionais como Senhora do Almortão e Maria Faia, seguido do segundo álbum de originais, É Teu, lançado em setembro deste ano. Um registo de assumida dramaturgia no qual se inspiram “na simplicidade com que a música popular portuguesa nos chega, carregando uma força primária que poderia ser expressa numa epopeia, uma peça de ópera ou de rock sinfónico, porque não?”. É em busca dessa energia que Roberto e Patrícia se reduzem ao formato que dominam (insistem que “com um instrumento e duas vozes já temos trabalho que nunca mais acaba”) e, ainda que sejam alvo de algumas críticas mais tradicionalistas (“A Senhora do Almortão só se faz com adufes!”), reafirmam, à sua maneira, o total respeito pela herança cultural. “Quando ouvimos estas vozes de pessoas que podem ser iletradas mas que têm um poder tamanho e que brota essencialmente da necessidade, é algo que nos toca muito e que nos dá muita vontade de as cantar, de as disseminar e de as transformar.”

Medeiros/Lucas
DR
Encontro de gerações
Recusando a atitude “museológica” que pretende sacralizar a música tradicional, a dupla Medeiros/Lucas quer chegar a um lugar novo, só deles
Ainda que de modo algo improvável, respeito e admiração mútua uniram Carlos Medeiros, veterano cantor, a Pedro Lucas, de uma geração muito mais jovem, dois açorianos que impressionaram com a originalidade do seu primeiro trabalho em colaboração (Mar Aberto, de 2015). No mais recente disco, Terra do Corpo, juntou-se ao projeto o letrista João Pedro Porto e com a ajuda de “algumas conversas de café meio artistico- -filosóficas” foram-se estabelecendo balizas para a formação de um conceito-motor. Medeiros, de voz grave, não tem dúvidas: “Na minha maneira de cantar tenho quase inconscientemente muito da música tradicional portuguesa, porque andei muitos anos por aí a imitar, a mexer, a desfazer…”. Por sua vez, Lucas, vindo de uma formação mais académica na música, admite ir beber tanto a “fontes da Andaluzia, do Norte de África, canções açorianas de baleeiros e marinheiros” como a José Afonso e Sérgio Godinho, mas também à geração contemporânea de cantautores portugueses (refere, por exemplo, Samuel Úria, B Fachada e Éme); sem esquecer “aquilo que vou ouvir para casa e que é muito mais atual: Arca, Flying Lotus, Destroyer…”.
O resultado final de tantas referências e ideias pode provocar uma primeira estranheza… A melancolia que ecoa origens mais tradicionais contrasta com pesadas paisagens sonoras eletrónicas, geralmente pouco discretas, um “truque para que da mistura entre o antigo e o novo possa nascer uma idiossincrasia nossa, qualquer coisa de diferente, de identitária”. Admitindo que está a quebrar com um qualquer cânone da música popular tradicional, Pedro Lucas opõe- -se à “atitude extremamente museológica” da tentativa de sacralizar a tradição musical portuguesa, rindo-se da ideia de “D. Afonso Henriques vindo por aí abaixo com um cavaquinho numa mão e uma espada na outra”. Ou, como dirá Carlos Medeiros: “Fala-se da música tradicional como algo distante, lá do campo. Não vejo a ‘música do povo’ como distante. Quem sou eu? Eu sou do povo. Quando falo da música tradicional falo da minha música e mudá-la não faz de mim menos genuíno ou autêntico”.

Criatura
Marcos Borga
Frases feitas, música nova
A música dos Criatura é difícil de catalogar. Sem se esquecerem de “olhar para trás” reivindicam a liberdade de “divagar e globalizar”
“Chegámos à conclusão de que não se consegue retroceder infinitamente na História até que se chegue a um único ponto de criação. Tudo o que resta, então, são criaturas…”. É com base nesta ideia que Edgar Valente, 26 anos, vê um projeto que hoje conta com 12 músicos de várias regiões do País que se assumem como criaturas mas também como criadores. Nessa ideia e no sentimento de que “algo naquilo que estamos a viver hoje não está muito certo e a solução é olhar para trás e encontrar formas de expressão mais primordiais, aquelas que nos interessam realmente.”
Essas fontes de inspiração assumem em Aurora (2016) uma grandiosidade que ilustra bem a forma como estes jovens músicos veem o património herdado da cultura popular. A formação dos Criatura mistura um vasto leque de sonoridades e instrumentos tradicionais, incluindo guitarras portuguesas, sopros, cavaquinhos, bandolins, aerofones, percussões várias ou vozes de coro alentejano e assume contornos épicos que se aproximam dos climaxes do rock progressivo ou da complexidade de uma orquestra. Uma consequência necessária, apontam, da “liberdade de podermos divagar e globalizar a música, mas ao mesmo tempo reconhecer e aprender com o que está aqui, à nossa porta”. A lírica, por contraste, tende a focar-se nos mínimos, muitas vezes reproduzindo ditados populares, frases feitas e lengalengas “com um poder mântrico muito verdadeiro”. A ânsia criativa que os move impede os Criatura de se fecharem numa “ideia estanque de tradição” mas do seu programa faz parte o desejo de “preservar as culturas que nos movem e não merecem cair em esquecimento”