Não raras vezes, há grandes verdades que se revelam, ou escondem, em canções. “São muitos séculos em morna ebulição/ a transitar entre o granizo e a combustão/ e um qualquer hino/ p’ra qualquer situação/ a pessimista, a optimista…”, cantava Sérgio Godinho, em Só Neste País, de 2006. Poucos anos depois, chegou o “granizo” dos anos da troika e sentimo-nos os piores do mundo, infelizes vítimas castigadas. Agora, 2017, eis-nos de volta à “combustão”, somos os melhores outra vez, e só não vê quem não quer: o secretário–geral das Nações Unidas é português, Cristiano Ronaldo continua a ser português, Mourinho já foi mais special mas é português, ganhámos o Campeonato Europeu de Futebol pela primeira vez com um golo do mais improvável goleador, estragando a festa aos poderosos franceses, todos os dias Portugal brilha num qualquer site de viagens como melhor destino de férias e as cidades enchem-se de turistas vindos de todo o mundo, até na época baixa, vibramos quando mais um famoso decide comprar casa em Portugal (o último foi o ator Michael Fassbender que será vizinho de Monica Bellucci em Alfama), os nerds mais poderosos do mundo escolhem Lisboa para instalarem o seu ninho a que chamam Web Summit e, agora, verdadeira cereja – que estamos no tempo delas e as nossas são, claro, as melhores do mundo – no topo de tudo: quebrámos um enguiço com 50 anos e, até parece mentira, ganhámos a Eurovisão! Tudo isto naquela posição desconfortável, lá estão as canções a intrometer-se, que Jorge Palma cantou: com “um pé numa galera e outro no fundo do mar”.
‘À margem do mundo’
Racionalmente, todos conseguimos perceber que o talento de Ronaldo é só de Ronaldo, que o percurso de António Guterres é sobretudo do próprio António Guterres, que o remate do Éder correu bem mas podia ter corrido mal, que a estrondosa vitória dos irmãos Sobral em Kiev é acima de tudo do talento deles, Salvador e Luísa, mas, por favor, não nos digam para não transformarmos tudo isso em vitórias épicas de Portugal. Não vale a pena, é pedir demasiado a muitos milhares de portugueses, dentro e fora de fronteiras. A carga simbólica de cada um desses triunfos passa a ser, ainda mais num país como Portugal, uma grande parte da sua essência. Sobretudo quando essas vitórias implicam uma validação exterior para o feito de um português ou do coletivo. Foram muitos anos, e não tão distantes assim, “sem espetáculo e sem alianças, orgulhosamente sós” (palavras de António Oliveira Salazar ditas em 1965) ou a pensarmos na nossa situação (geográfica mas também cultural) como periférica.
“Evitar o destino comum, instalar-se, não se sabe por que aberração ou milagre, à margem do mundo, é um pouco aquilo que o povo português sempre tem feito”, escrevia Eduardo Lourenço, em 1997, num texto a publicar na sua Mitologia da Saudade (1999). “Portugal foi o único país que colocou no centro da sua bandeira a esfera armilar, em suma, a representação do universo. Isto não espanta ninguém e ainda menos os Portugueses. Essa imagem não é apenas de ordem cosmológica – consagração do papel de Portugal como descobridor de ‘novas terras e novos céus’ – mas de ordem crística: a do convidado modesto sentado no lugar de honra dos eleitos.”
Sem meios termos
E por falar em Salazar. No passado sábado, 13 de maio, a tentação era demasiado forte: com o Papa Francisco a canonizar dois pastorinhos em Fátima, o Benfica a conquistar, no Estádio da Luz, o seu primeiro tetracampeonato e com uma noite de participação histórica no Festival da Eurovisão, como não pensar na célebre trilogia de Fs associada ao Estado Novo, “Fátima, Futebol e Fado”? O contexto é outro, sim, e o fado é aqui um bocadinho forçado (se bem que há um jornalista espanhol que jura que Amar Pelos Dois é uma espécie de fado), mas percebe-se bem a lembrança. No Facebook, que fervilhou por estes dias com tanto material de primeiríssima qualidade para entusiasmos e cinismos, ódios e paixões, ingenuidade e snobeira, alguém brincava: “E um F de melhores Finanças, não?” Nem isso faltou. Bastou esperar umas horas para que o Instituto Nacional de Estatística divulgasse dados a que já não estávamos habituados: a economia portuguesa cresceu 1% no primeiro trimestre deste ano, com uma variação positiva, em relação ao mesmo período do ano passado, de 2,8%. Para encontrar um valor de crescimento homólogo superior é preciso recuar até ao ano 2000. Na terça-feira, 16, João Miguel Tavares, cronista do diário Público, aguerrido crítico do governo de António Costa, escrevia uma crónica intitulada O Que É Que Mais Pode Correr Bem? (com toda a ironia, sim): “O País está tão espetacular que até parece mal dizer mal. (…) Tudo o que era sofrimento com Passos Coelho se transmutou em alegria com António Costa.” O granizo e a combustão, sempre alternando neste país que parece não ter meios termos.
A “autoestima festiva”
É preciso recuar até 1998 para encontrar uma outra onda de euforia e alta autoestima, até maior do que a atual (que, na verdade, brilha mais por contrastar com uma profunda depressão e recessão recente, tanto económica como de autoconfiança). Em 1998, quando demos por nós, éramos anfitriões do mundo. 146 países marcaram presença na Exposição Mundial que revolucionou a zona ribeirinha oriental de Lisboa e a autoestima do País. À beira do Tejo, a Expo’98 prometia muito: prosperidade e um novo universalismo para o século XXI que estava quase a chegar.
A grande feira chegou ao fim a 30 de setembro de 1998 com uma enorme festa e, como se o orgulho português não estivesse suficientemente alimentado, poucos dias depois, a 8 de outubro, anunciou-se o primeiro prémio Nobel da Literatura atribuído a um escritor de língua portuguesa, José Saramago. Éramos, mais uma vez, os melhores do mundo. Éramos? Em 2004, ano em que Portugal organizou o campeonato europeu de futebol (que só não se afirmou, também ele, como símbolo maior na nossa história recente por causa daquela maldita e triste final que perdemos contra a Grécia), foi publicado um desses livros que coloca todo um país ao espelho (ou no divã), improvável best-seller vindo do universo da Filosofia. Portugal Hoje, O Medo de Existir, de José Gil, era o livro de que todos falavam (falávamos).
O tom era tão negro que o autor, nas notas finais, sentia necessidade de quase pedir desculpas: “Contrariamente ao que pode parecer, nenhum pressuposto catastrofista ou otimista quanto ao futuro do nosso país subjaz ao breve escrito agora publicado. Se não se falou ‘no que há de bom’ em Portugal, foi apenas porque se deu relevo ao que impede a expressão das nossas forças enquanto indivíduos e enquanto coletividade”. Umas páginas antes podíamos ler:
“Enquanto tudo se vai desmoronando no interior de nós, vamos dançando no palco televisivo e no espaço mediático dos grandes feitos (desde Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura ao prémio Nobel e ao Euro 2004). Mas o medo ou terror (branco, invisível) do terror (negro, reconhecível) continua a minar-nos o inconsciente, a inibir-nos, a acautelar-nos, a proteger-nos do exterior, a impedir-nos de criar outras formas de pensar e existir.” E mais à frente, ainda sobre este “sistema tão desejado da autoestima festiva”: “Medos, microterrores quotidianos, múltiplos, como bubões de uma peste anunciada, que arrancam a pele.” Toma lá e embrulha, Portugal.
“Uma nação humilhada”
A Eurovisão, essa, parece ser todo um capítulo à parte na história da autoestima nacional. Faz todo o sentido que a tivéssemos valorizado, sobretudo no fim dos anos 70 e durante toda a década de 80 do século passado. Queríamos ser o País novo que emergiu da tal ditadura solitária com um “império ultramarino” cada vez mais impossível e fantasmagórico.
O novo desígnio era mesmo a Europa, estratégia firmada em 1986 com a chegada à Comunidade Económica Europeia depois do pedido de adesão formalizado em 1977. Sim, queríamos ser aceites além-Pirenéus, queríamos fazer parte. Queríamos que gostassem mesmo de nós e reconhecessem o novo valor. Mas não era no palco da Eurovisão que nos íamos safar… E bem que tentámos. Antes do 25 de Abril de 1974, tínhamos boa desculpa: não votavam em nós por razões políticas (estreámo-nos, em 1964, com António Calvário a cantar Oração e a sair da Dinamarca com zero pontos). Um capitão de Abril a cantar (Duarte Mendes, com Madrugada, em 1975)? Sim, boa ideia: 16º em 19. Carlos do Carmo a cantar Manuel Alegre, em 1976? Que luxo: 12º em 18. Portugal no Coração, letra de Ary dos Santos a pedir desculpa pelo sofrimento da Guerra Colonial, e uma seleção nacional (Fernando Tordo, Ana Bola, Paulo de Carvalho…) a cantar? 14º em 18. Mais pop? Manuela Bravo a cantar Sobe, Sobe, Balão Sobe? 9º em 19. Dai Li Dou, para todos (não) perceberem e dançarem muito? Top! 17º em 20. Uma bela canção simplesmente interpretada ao piano por Maria Guinot? Que lindo, Silêncio e Tanta Gente… 11º em 19. Os Da Vinci a revisitar, já em desespero de causa, os Descobrimentos e o império perdido? 16º em 22. E por aí fora…
A melhor classificação chegaria em 1996 com o sexto lugar de Lúcia Moniz (cantando O Meu Coração Não Tem Cor). No século XXI, deixámos o festival entregue à sua irrelevância.
O historiador António Araújo editou, em novembro do ano passado, o livro Da Direita à Esquerda, Cultura e Sociedade em Portugal, dos Anos 80 à Actualidade. Se, agora, quiser fizer uma reedição há, pelo menos, uma frase que deixou de fazer sentido: “Quanto à representação do povo como alvo do humor, ela resultará, porventura, de uma pulsão masoquista de uma nação humilhada, década após década, nos relvados do futebol ou nos festivais da canção.
Quanto ao futebol, a vitória no Europeu de 2016 devolveu momentaneamente à Pátria o orgulho ferido por tempos de desencanto e crise. Mas, quanto ao resto, Portugal amarga o trauma de nunca ter ganhado o Festival Eurovisão da Canção, matéria que intriga até cientistas sociais e académicos.” Com a canção menos festivaleira de sempre e com um jovem músico da área do jazz, que nunca tinha acompanhado o Festival da Eurovisão, nem sabia bem o que isso era, fizemos História. Pequena História, sim, mas também conta.
A expressão “Portugal, twelve points“, várias vezes repetida no passado 13 de maio, era uma absoluta novidade aos nossos ouvidos. Anunciará uma outra “forma de pensar e existir”? Afinal, há muitos portugais. Pelo menos dois: o do granizo e o da combustão, o pessimista e o otimista. O nosso coração pode amar os dois?