É como nos vídeos de Bill Viola. Para fazer jus à vida de Leonard Cohen em Montreal, Canadá, devemos imaginar Cohen como sujeito de uma instalação do artista norte-americano pioneiro da videoarte e a quem interessa desconstruir os binómios vida/morte, juventude/velhice, luz/ sombra, presença/ausência e remetê-los para um mesmo plano. É preciso imaginarmos o Leonard Cohen velho a caminhar na rua lado a lado com o Leonard Cohen novo; imaginarmos o Cohen poeta sentado num café lado a lado com o Cohen músico; Cohen a passear na praceta onde vivia durante o inverno e durante a primavera, durante o dia e durante a noite.
A página oficial do Facebook dedicada à vida e obra de Leonard Cohen recordava, no passado dia 1, o seu “afeto constante por Montreal”, a cidade onde nasceu em setembro de 1934. Citava-se o excerto de uma entrevista que o músico deu à revista francesa Les Inrockuptibles semanas antes de morrer, a 7 de novembro de 2016, aos 82 anos: “A menos que tenha direito a um segundo vento, duvido que consiga regressar a Montreal, onde vivia antes de uma crise financeira me ter obrigado a lidar com assuntos em Los Angeles. Tenho saudades dos meus amigos, da minha casa e da minha cidade de uma forma demasiado aguda para poder descrevê-la”.
A sua casa em Montreal é um edifício de três andares, fachada de pedra e janelas grandes com moldura em cinzento escuro, que dá para o Parc du Portugal. Numa tarde de verão, jovens e velhos sentam-se nos bancos de jardim da praceta, à sombra das árvores. Ao centro, há um coreto. Alguns velhos, à conversa para passarem o tempo, devagar, falam em português. A praceta fica situada em Little Portugal, junto ao Le Plateau, o bairro artístico e hipster da cidade, seguido de Mile End, o bairro dos judeus. No inverno, o Parc du Portugal fica com o cromatismo de um filme a preto e branco da Nouvelle Vague, as árvores despidas, o solo e o telhado do coreto cobertos por um manto branco.
Morreu Cohen, viva Cohen
A propósito da sua morte, no início de 2017 a Cinemateca Portuguesa organizou um ciclo dedicado ao músico que começou por ser poeta, do qual fazia parte Ladies and Gentlemen, Mr. Leonard Cohen, um filme de 1965 tido por primeiro documento filmado com Cohen. A preto e branco, acompanha Cohen, com pouco mais de 30 anos, numa das suas temporadas passadas em Montreal, a declamar poesia em botequins, a passear pelas ruas cheias de neve, a viver a boémia da cidade. Frequentava cafés na Rua Stanley como o PamPams ou o Dunn’s Delicatessen. O primeiro já não existe, o segundo transformou-se em Dunn’s Famous.
Os habitantes de Montreal fazem questão de frisar a importância das estações do ano e a forma intensa como cada uma é vivida. Dizem que tem de passar-se por um inverno a sério para se saber apreciar verdadeiramente o verão. Adoram as primeiras neves que caem e depois há aquilo a que chamam folie du printemps [loucura da primavera]. Neste verão, e pelo quarto ano consecutivo, instalaram-se pianos por diversos locais públicos, disponíveis para qualquer pessoa tocar. Um deles esteve domiciliado no coreto do Parc du Portugal.
A praceta fica colada à avenida Saint- -Laurent, grande artéria da cidade também conhecida por The Main. Antes de ir viver para Los Angeles, grande parte da rotina de Cohen era feita por ali.
Na esquina do Parc du Portugal, há a Quincaillerie Azores, onde era visto com frequência a entrar e comprar quaisquer miudezas de que precisasse para a casa. Logo abaixo, descendo a Saint-Laurent, fica Les Anges Gourmets. Cohen costumava ir a esta pastelaria portuguesa durante a tarde, pedia um café e sentava-se a ler o jornal. As empregadas lembram sempre o senhor cordial, de uma boa educação irrepreensível, que cumprimentava toda a gente. Para comer bagels, Cohen ia à Bagel Etc, com mesas e sofás de estofo de pele como os diners que vemos nos filmes e colunas a segurarem o balcão. Mesmo ao lado, há a J. Scheter, uma loja de desporto onde também era visto amiúde. Quanto a restaurantes, frequentava sobretudo o Main Deli Steak House ou o Moishes.
Montreal é a cidade dos graffiti consentidos, há-os em cada empena, acesso a garagem ou jardim traseiro, muitas vezes encomendados pelos proprietários. Em junho acontece mesmo na cidade o Mural Festival, dedicado à street art. Na última edição, foi pintado por Kevin Ledo o rosto de Cohen na empena de um edifício de nove andares na rua Napoleon, junto a Saint-Laurent.
Financiado pela câmara, está a ser terminado um outro mural de Leonard Cohen num edifício de 20 andares, no número 1420 da rua Crescent, pintado por Gene Pendon e El Mec e ocupando uma área de 8 500 metros quadrados. Fica num bairro repleto de bares, restaurantes e discotecas. Em tons claros de castanho, o gigante Cohen está de casaco e camisa abotoados, chapéu na cabeça e a esboçar-nos um sorriso. A mão direita encontra-se pousada sobre o peito, em jeito de permanente saudação.