É um dos melhores papéis da sua vida. O que não é dizer pouco, quando se fala de Richard Gere, eterno galã do cinema americano, que já trabalhou com alguns dos melhores realizadores mundiais. No ecrã, já foi gigolô, músico de jazz, marinheiro, milionário, dançarino. Em Viver à Margem, o filme que chegou às salas de cinema nacionais, revela-se como o contrário de tudo isto: é um sem abrigo, um alcoólico, um falhado, que cai nas ruas de Nova Iorque e fica cheio de pena de si próprio.
Talvez seja difícil imaginar um Gere assim tão vulnerável, mas esta sua flexão camaleónica é espantosa, um registo comovente e realista apenas possível com um envolvimento inexcedível. É uma interpretação visceral, à semelhança da criada por Mickey Rourke para O Lutador. Richard Gere, 66 anos, nasceu em Filadélfia. Filho de um vendedor de seguros, cedo mostrou a sua vocação para as artes. Não imediatamente para o cinema, que viria a descobrir mais tarde, mas para a música, a que ainda hoje se dedica. Aliás, a cena em que George, a sua personagem em Viver à Margem, pisa timidamente as teclas de um piano velho, é gravada em som direto. Gere sempre foi um virtuoso, compondo e tocando vários instrumentos.
Não é, pois, de estranhar que a sua carreira de ator tenha começado nos musicais, tendo desempenhado em palco, aos 23 anos, o papel do protagonista Danny Zuko na produção inglesa de Grease, cinco anos antes de John Travolta o ter celebrizado no cinema.
No grande ecrã, obteve o seu primeiro grande papel através da câmara do realizador Terrence Malick, no drama rural Dias do Paraíso (1978), representando um lavrador. Seguiram-se muitos outros filmes, que o tornaram num dos mais famosos atores de Hollywood: American Gigolo (1980), de Paul Schrader; Oficial e Cavalheiro (1982), de Taylor Hackford; Cotton Club (1984), de Francis Ford Coppola; As Chaves do Poder (1986), de Sidney Lumet; Pretty Woman (1990), de Garry Marshall; Rapsódia em Agosto (1991), de Akira Kurosawa; Dr. T e as Mulheres (2000), de Robert Altman; Chicago (2002), de Rob Marshall; ou Atraídos pelo Crime (2009), de Antoine Fuqua. Budista e ativista dos direitos humanos, Richard Gere tem mostrado, nos últimos tempos, um especial interesse pelo cinema independente, envolvendo-se muitas vezes na produção dos filmes em que participa. Foi o que aconteceu neste Viver à Margem, onde chama a atenção para as condições dos sem-abrigo na cidade de Nova Iorque, e no mundo.
É um papel muito exigente, e uma das suas melhores interpretações de sempre. Este é o seu Macbeth?
Sem dúvida, é um dos melhores filmes que fiz. O resultado deixou-me muito satisfeito, ainda para mais tendo demorado tanto tempo a realizar o projeto. Viver à Margem não foi fácil de filmar nem de conceber. A ideia de usar lentes de longa distância a filmar-me nas ruas de Nova Iorque foi um grande desafio. Não sabíamos se iria resultar.
Mas resultou. Como foi a experiência de fazer de vagabundo nas ruas de Nova Iorque?
Foi incrível. Fizemos um teste longo, para saber se o conceito funcionaria. Depois, até aproveitámos essas cenas para o filme. A verdade é que eu estive 45 minutos a pedir esmola, numa esquina de Nova Iorque, e ninguém me prestou qualquer atenção.
Isso é inacreditável.
Foi uma experiência profunda. Serviu para me aperceber de quão inconscientes nós somos e de quanto projetamos as coisas através de ideias superficiais.
Todo o filme parece ter sido construído à sua volta. Acha que algum outro ator poderia ter feito este papel?
Sim, claro. Acho que é importante este papel ter sido desempenhado por um ator bastante conhecido, como eu, porque leva as pessoas a pensarem: “Se acontece com ele, poderá acontecer comigo.” E, na realidade, isso aconteceu–me. Porque senti-me invisível nas ruas de Nova Iorque, na estação de comboio, no metro. Foi inacreditável.
Quanto de si está presente nesta personagem?
Essa é uma pergunta difícil, mas devo dizer que está mais do que eu pensava inicialmente. Quando vi o filme, descobri várias coisas. Pensava que esta personagem teria mais cólera. Mas não: George é frustrado, embebeda-se, mas não tem rancor, nem raiva. Mesmo quando é expulso da casa, ele não é violento, acaba por aceitar a situação e fica apenas ali sentado.
Ele também é muito delicado, um cavalheiro… O que lhe confere um certo mistério.
Eu não queria entrar nos clichés dos alcoólicos ou dos toxicodependentes. Queria que as pessoas se reconhecessem na personagem, e também mostrar a sua queda. Por isso é que o filme começa no dia em que ele perde a sua casa.
É uma homenagem aos sem abrigo de Nova Iorque?
Há um grupo com que trabalho em Nova Iorque, já há muito tempo, que se chama Coalition for the Homeless. Eles monitorizam os refúgios de Nova Iorque e procuram locais para os sem abrigo. Tive de lhes pedir uma autorização para entrar nos abrigos. Claro que desejava que a interpretação fosse a certa e apropriada, expressando a minha preocupação com aqueles que vivem nas ruas. Mas também queria ser universal. Metaforicamente falando, nesta vida todos nós somos sem-abrigo, à procura de um lugar para morar. Mesmo quando já temos uma casa, uma família e um cão, continuamos à procura desse local, num sentido mais profundo. Por isso, quis abordar esse lado universal. É como o que está a acontecer agora aí, na Europa, com a crise de refugiados. É muito importante encontrar formas de lidar com esse assunto no mundo contemporâneo. Pode mesmo acontecer a qualquer um.
O filme é também sobre o envelhecimento. George diz que costumava ser bonito, e agora já não é… Como é que um dos grandes galãs do cinema americano lida com o envelhecimento?
Ninguém lida com isso. Apenas acontece. É triste, mas acontece-nos a todos. Eu não quero ter as minhas capacidades mentais diminuídas, esse é o meu maior receio. Faço um grande esforço para me manter mentalmente ativo, fazendo vários tipos de exercícios. O envelhecimento físico, por si só, não me incomoda tanto. Faz parte da vida.
Há uma cena do filme em que dois sem abrigo vão a um restaurante vegetariano, onde lhes dão de comer. Dixon, uma das personagens, diz que os vegetarianos têm um coração mais quente, porque como estão habituados a tratar bem os animais, também tratam melhor as pessoas. Acredita nisto?
Bem… Eu acho que devemos ter consciência daquilo que estamos a fazer com o nosso planeta. E, nesse sentido, os vegetarianos têm alguma superioridade moral. Eu ainda como peixe, mas estou a tentar deixar de o fazer. O respeito pela vida é muito importante, independentemente do tipo de vida de que se trata. Os vegetarianos, de uma maneira geral, têm impulsos mais nobres.
É um papel extraordinário, mas não ganhou sequer uma nomeação para um Oscar. Tal entristece-o?
Foi uma companhia pequena a produzir Viver à Margem. A Cold Iron Pictures produz muitos bons filmes, mas não tem a capacidade financeira e logística para os levar até aos Oscars. O jogo dos Oscars tem um preço muito elevado.
Persegue a história deste filme desde os anos 1980. Porque demorou tanto tempo a concretizá-lo?
O argumento original foi escrito em 1988 por Jeffrey Cane, e, na altura, um produtor enviou-mo. Havia ali qualquer coisa de que eu gostava, que me atraía, mas não o suficiente para querer fazer logo o filme. Contudo, aquele argumento não me saía da cabeça, e acabei por comprá-lo com a intenção de o rescrever.
Fez mudanças significativas?
Demorei algum tempo a saber o que fazer com o guião. O original era mais previsível, eu quis torná-lo mais elíptico e realista. A dada altura, li o livro Land of The Lost Souls: My Life on the Streets (2009) de Cadillac Man [volume de memórias de um sem-abrigo nas ruas de Nova Iorque], e aquilo era exatamente o que estava à procura para o filme: uma história sem sentimentalismo, sem autocomiseração, pura e dura, narrando o que acontece. Como um filme pessoal, muito simples e direto.
Mas o guião acabou por ser desenvolvido por Oren Moverman, que também assina a realização…
Sim. Oren é um amigo. Um dia, estávamos juntos e eu falei-lhe desta ideia. Ele leu o guião e disse-me que percebia o que eu pretendia. Então, reescreveu-o e manifestou interesse em realizar o filme. Criámos um pequeno orçamento, e filmámos nas ruas de Nova Iorque.
Já pensou em realizar filmes?
Tinha pensado em ser o realizador deste filme. Mas depois, quando comecei a trabalhar com o Oren, apercebi-me que, com as câmaras à distância, seria impossível atuar e realizar ao mesmo tempo. Há atores que têm essa ambição sempre muito presente. No meu caso, não é um dos grandes objetivos da minha vida, mas, por vezes, penso na possibilidade de me dedicar à realização.
Mas não tem nenhum projeto de realização a curto prazo?
Não. Eu gosto de trabalhar com as outras pessoas. Não é necessário que eu seja o chefe, mas gosto de trabalhar com quem tenha o mesmo tipo de preocupações e conceitos estéticos. Felizmente, nos últimos tempos tenho conseguido que isso aconteça.
Sempre no âmbito do cinema independente?
Sim, tudo o que eu faço agora é no circuito independente. É onde têm sido feitos os filmes mais interessantes. As películas que eu fazia, nos anos 1970 e 1980, estão agora a ser realizadas pelas mãos de independentes, porque os grandes estúdios dedicam-se a outro tipo de produções.
Qual será o seu próximo filme?
Neste momento estou empenhado em Oppenheim Strategies, um drama político que fala da situação de Israel, realizado por Joseph Cedar, que, há cinco anos, ganhou um prémio em Cannes por Footnote. Julgo que este novo projeto poderá estar no festival. O que seria ótimo, porque eu nunca lá estive com nenhum filme em que tenha trabalhado, e é algo que eu gostaria muito que acontecesse.
Oppenheim Strategies fala da situação de Israel, mas os Estados Unidos estão, hoje, envolvidos especialmente na política interna. Como vê o fenómeno Donald Trump?
A sociedade americana é muito dividida. Por um lado, há os democratas que têm um maior sentido humanitário. Por outro, os republicanos que têm uma maior cultura individualista. No meio, estão os independentes, que equivalem a cerca de dez por cento dos eleitores. É esse centro que decide quem ganha as eleições. É muito difícil que eu dê o meu voto a alguém tão radical como Donald Trump. Na prática, acho que ele não tem hipóteses de ser eleito presidente. Mas não deixa de ser alarmante que um louco como o Donald Trump tenha tantos seguidores.