Descontente com a estética do cinema militante que retratava as questões sociais de uma forma clássica, Gilles, personagem de Depois de Maio, levantava a questão se o cinema revolucionário não deveria ser acompanhado por uma estética revolucionária condizente. Essa questão também está presente em duas abordagens distantes que chegam agora às salas: As Ondas de Abril, de Lionel Baier (já em sala), e Depois de Maio (estreia-se amanhã), sobre Abril de 1974 e Maio de 1968, respetivamente.
Juntam-se sempre sentimentos contraditórios perante este género de incursões: por um lado, desejam-se retratos fiéis, porque são momentos históricos com relevância atual que não devem ser vilipendiados. Por outro, é um contrassenso ou uma ironia querer restringir a liberdade artística a filmes que falam de grandes momentos de libertação. Acrescente-se que, regra geral, os filme que procuram um excesso de rigor e fidelidade à história resultam num empastelado insuportável. Tal não quer dizer que os que arrisquem caminhos diferentes obtenham bons resultados.
Em As Ondas de Abril, Lionel Baier ousou criar uma comédia tendo Portugal antes e durante a revolução como contexto. Não é uma comédia de humor particularmente inteligente, mas mostra boas intenções, sem qualquer desrespeito pelo ideário de Abril, mesmo quando o retrata nos seus excessos. Um filme que aguça a curiosidade do público português – não são assim tantas vezes que vemos o 25 de Abril retratado no cinema, ainda para mais segundo uma perspetiva estrangeira – mas vai pouco além disso. Uma comédia pouco estimulante.
Olivier Assayas, em Depois de Maio, foi por um caminho mais natural, com melhores resultados. Alicerçou-se em bases realistas (as imagens de rua são muito boas), para transmitir o espírito do maio de 68, criando o ponto de partida no movimento estudantil liceal, num apaixonante retrato de uma juventude politizada. A sua leitura não apenas factual da História faz-nos refletir. O Maio de 68 foi uma espécie de nova revolução francesa, que não chegou a ter a eficiência que os seus impulsionadores pretendiam, mas cujo espírito alastrou pela Europa (incluindo Portugal) e até por outros pontos do mundo. Assayas não construiu um filme de aglomerados de elementos históricos exemplares – apesar das imagens dos motins serem de um realismo e proximidade angustiantes -, procurou antes percorrer a ideologia e empenho do movimento, através das suas personagens, o processo revolucionário em cursos, que age sobretudo ao nível das mentalidades.
Começa, naturalmente, por um grande cuidado na caracterização: do guarda roupa ao cenário, dos discos de vinil à motocicleta. É um filme de personagens adolescentes ou jovens adultos, que fecha o campo nos seus olhares. Não procura de todo cercar o tema de Maio de 68. Não viaja às fábricas (embora aflore também o tema). Centra-se na juventude, para exemplificar a abrangência ideológica, de fações e frações, entendendo-o como um todo, do qual também fez parte, por exemplo, a incorporação do espírito hippie, o psicadelismo e o uso de ácidos, o primado da cultura.
Olha-se para o Maio de 68 como um tempo de grande radicalismo e de crenças profundas não necessariamente construtivas. Em que a sociedade se agitou para se reposicionar. O que o filme de Olivier Ossayas tem de melhor, além de mostrar que o Maio de 68 foram muitas coisas distintas, é a capacidade de peneirar a força dos movimentos coletivos em busca do indivíduo. Porque é nos seus percursos individuais que se constrói a história.
Depois de Maio termina com as personagens desamparadas, em busca de um caminho, com poucas certezas, na ressaca de um período de delírio. Mas olhando para a França (e para a Europa) de hoje, com a multiplicação de movimentos radicais de extrema direita, já não nos ocorre perguntar: “Onde estavam no Maio de 68”, mas antes “Onde estão vocês agora?”