O bisavô de Álvaro, Ricardo Covões, foi um eminente político republicano (envolvido, por exemplo, na revolucionária lei de 1919 que estipulou a jornada de oito horas de trabalho) até se dedicar ao mundo dos espetáculos: chegou a explorar o Teatro de São Carlos, mas o seu apelido confundir-se-ia com a história do Coliseu de Lisboa, que geriu a partir dos anos 20. A família de Álvaro Covões, 50 anos (“Acontece aos melhores…”), nunca deixou essa sala da Rua das Portas de Santo Antão, mas foi com um evento ao ar livre que, neste século XXI, ele deu continuidade ao negócio da família: vender momentos especiais a grandes plateias. Em 2013, o Optimus Alive (de 12 a 14 de julho) abre a época dos já obrigatórios festivais de verão em período de férias grandes. Retrato de um empreendedor.
Cresceu numa família ligada aos espetáculos há várias gerações. Chegou a ter aquela curiosidade, quase mística, sobre o que está atrás do palco?
Esse fascínio existe sempre… Mas fui educado para ter um especial respeito por esse mundo. Há aquela ideia, muito fantasiosa, de que atrás do palco é só festa, e eu soube, desde cedo, que isso não é verdade. É um local de trabalho, de rigor, que tem de ser respeitado.
Tem memórias de brincar no Coliseu?
No palco não, nunca, nem durante espetáculos… De resto, sim, claro. Mas as minhas memórias, como sempre fui muito pró-ativo, são um bocadinho diferentes: comecei a trabalhar lá aos 14 anos, e, aos 15, já era gerente do bar. Naquela altura, podia-se trabalhar sendo jovem… Agora, só a partir dos 16, para criarmos inaptos, que chegam ao mercado de trabalho sem experiência nenhuma. Confunde-se exploração de mão de obra com experiência de vida. Se formos ao top 10 das fortunas portuguesas vamos encontrar dois ou três casos de gente que começou a trabalhar como paquete, com pouco mais de dez anos…
Começou, então, a ganhar dinheiro, no mundo do espetáculo, logo aos 15 anos…
Aos 14. Tem a ver com um espírito empreendedor, querer ganhar autonomia muito cedo, não se contentar com a mesada dos pais.
No seu caso, houve algum facilidade, por trabalhar dentro do contexto familiar…
Sim, sim, mas trabalhava a sério, até às 5 da manhã, se fosse preciso… Acho que o trabalho faz muito bem a toda a gente. E as férias também… Há quem queira trabalhar muito para ficar arquimilionário, eu com o dinheiro que ganhava podia fazer uma férias melhores. Não é que andasse em hotéis de 5 estrelas, mas não tinha que fazer inter-rail e dormir nas estações de comboios…
Olhava para o mundo do show business e dos concertos com um olhar diferente do dos seus colegas, não?
Faço parte daquela geração em que os pais não desejavam para os filhos que eles entrassem no mundo das artes… Fui educado para estudar, tirar um curso, arranjar um emprego. Acho que isso é uma tragédia cultural portuguesa: incutir aos miúdos que têm que estudar muito para arranjarem um bom emprego, serem doutores ou engenheiros. As pessoas devem seguir aquilo por que têm mais apetência. Alguém que se dedique às artes nunca vai ter um emprego no sentido clássico, vai ser um artista, patrão de si próprio. Há caminhos para todos. Eu tinha algum fascínio por esse mundo do espetáculo mas, pelo que me diziam, era tudo o que não se devia ser… Ainda fui para a faculdade, estudei…
Fez a vontade aos seus pais…
Conciliei sempre as duas coisas. A primeira vez que a Amália cantou sozinha no Coliseu, estive envolvido na produção, fiz isso com o meu pai. E já estava na faculdade, até tive um exame no dia do concerto…
Quais são as suas primeiras recordações de um espetáculo?
É difícil…Misturam-se várias memórias, mas as do circo no Coliseu têm muita força. Lembro-me bem do Circo de Moscovo, em 1971, que foi um acontecimento: toda a gente queria ver “os comunistas”, esteve sempre esgotadíssimo.
E o primeiro em que ganhou dinheiro?
[Pausa] …Em 1980, organizei uma festa com DJs, no Coliseu. Lembro-me de que tivemos um prejuízo de sete contos e quinhentos [€37,50] e a Pepsi-Cola, que era patrocinadora, pagou a diferença. Acho que foi o primeiro com risco financeiro. Zerámos no primeiro concerto, não foi mau…O mundo do espetáculo tem uma coisa boa: os resultados, sejam positivos sejam negativos, são imediatos
E nunca mais se afastou desse mundo…
Em 1990 comecei a trabalhar na banca, e a [produtora] Música no Coração também começou por essa altura… Foram atividades em paralelo. Sempre fui hiperativo: era quase sempre delegado de turma, estava nas associações de estudantes, trabalhava, andava sempre nos movimentos revolucionários, e ainda namorava…
Movimentos revolucionários?
Muitas pessoas não se lembram, mas eu sou de uma geração em que o comunismo esteve quase a tomar conta de Portugal e isto era confuso para um jovem… Pensávamos: “Vamos sair de uma ditadura para entrar noutra?”. Basicamente, éramos antiditaduras. Em 1979, no liceu, ganhei a Associação de Estudantes ao PCP… E continuo empenhado em várias causas. Acho que se viu isso com a minha participação no movimento contra o aumento da taxa do IVA nos espetáculos. Ou, por exemplo, no projeto social do Optimus Alive, em que financiamos bolsas científicas. Esta ligação de um festival de música à ciência [uma parceria Optimus Alive/Instituto Gulbenkian de Ciência] já é um case study apresentado em vários simpósios internacionais.
Quando criou o conceito do festival Optimus Alive, em 2007, já havia um caminho feito, em Portugal, inclusivamente pela Música no Coração, de que fazia parte, na área dos grandes festivais de verão. Como é que quis diferenciar esta sua criação?
O Alive tinha que ser um festival com peso, de grande dimensão, e que rapidamente pudesse ombrear com os grandes festivais europeus. Arriscámos bastante. Um dos conceitos, que às vezes as pessoas não interiorizam bem, é que nós não temos um palco principal e outros secundários: temos três palcos principais.
É um festival assumidamente urbano. Nunca chegou a procurar um recanto da natureza, inexplorado?
Para criarmos um produto, temos de analisar o mercado. Falava-se muito de festivais de verão associados ao turismo de natureza, e precisamente por isso procurei o oposto: criar um grande festival urbano. Os festivais de cidade, como o Alive, o Marés Vivas, o Rock in Rio, provocam muito mais a compra de bilhetes para um só dia, não são necessariamente para um público festivaleiro. Para o Sudoeste, Paredes de Coura e, antes, para o Vilar de Mouros, a maioria das pessoas compra passes para todos os dias. Aos festivais urbanos, vão mesmo pela música, por isso há uma grande responsabilidade na escolha do cartaz.
Com tanta oferta de música ao vivo – porque devido ao efeito da crise nas vendas de discos os músicos precisam cada vez mais de tocar – é preciso começar a programar o festival cada vez mais cedo?
Acima de tudo, é preciso estar atento… Já estamos a ver coisas para 2014. E antes do festival de 2012 já tínhamos coisas reservadas para este ano. Tem que se jogar com muitos critérios: sobretudo com a organização geográfica das digressões das bandas e com a questão dos lançamentos de discos novos…
As produtoras de concertos, como a sua Everything is New, ficam a ganhar com essa necessidade dos músicos de tocarem mais…
É um pau de dois bicos, porque, precisamente por isso, havemos de chegar a um ponto em que há uma oferta excessiva.
E já estamos perto desse ponto, em Portugal?
Acho que não. Há um caminho que é a criação de públicos. Ir a concertos é um hábito que se adquire, que vai entrando nas rotinas das pessoas. É um trabalho que tem sido feito mas ainda não há uma superoferta… Podemos é dizer que, agora, não há poder de compra suficiente em Portugal, ou, na verdade, pessoas suficientes… Sabemos que os portugueses têm emigrado aos milhares, e sendo esses emigrantes maioritariamente jovens, eram todos potenciais clientes nossos. E há ainda os estrangeiros que estavam cá e se estão a ir embora…
Nota-se uma grande quebra na venda de bilhetes para concertos?
Às vezes parece-me que os políticos e os jornalistas não sabem o que estão a dizer. Quando se fala de quebra de consumo tem de se analisar um padrão: quantas pessoas havia o ano passado a consumir e quantas há este ano? Claro que o poder de compra está a cair, mas é preciso ver que há muito menos gente a consumir… E a maneira como se divulgam os números só cria desconfiança nos mercados. Julgo que, no ano passado, saíram de Portugal cerca de 300 mil pessoas. É preciso ter isso em conta nas análises. É também por isso que investimos, já há alguns anos, em vender os nossos espetáculos no estrangeiro.
À primeira vista parece-nos que há muitos concertos e que quase todos têm público…
Tudo o que tem uma qualidade diferenciadora, ou um caráter de alguma maneira exclusivo, único, enche. Tudo o que é mais normal, mais convencional, é um desastre. Provavelmente, viu-se isso no recente festival Portugal ao Vivo…
Em relação ao Optimus Alive, em comparação com o ano passado, há uma tendência de mudança?
Ainda é cedo… Há um hábito que mudou completamente: as pessoas agora compram muito mais em cima do acontecimento. É um fenómeno dos últimos meses. As pessoas, se não têm muita disponibilidade financeira, não compram para um concerto que vai acontecer daqui a seis meses, compram para o presente. No Alive não estamos ao mesmo nível do ano passado mas estamos bem, com vendas equivalentes a 2011.
Desde que fundou a Everything is New houve um aumento enorme de oferta de música ao vivo…
A indústria discográfica vai ser um case study nas universidade de marketing de todo o mundo sobre como se consegue destruir um negócio… A música digital já existe há nem sei quantos anos, mas ainda hoje, para comprar música digital, temos que ter cartão de crédito. Não conheço mais nenhum produto de grande consumo que obrigue os consumidores a terem cartão de crédito. É incrível. A indústria não se adaptou, não investiu na distribuição, e está a morrer na praia… Criaram-se outros hábitos, como a troca de ficheiros, porque as pessoas foram à procura… O consumidor claramente queria aquele produto, mas como a indústria não lho deu foi à procura de outra maneira…
Quando desenhou o Alive a dimensão internacional esteve sempre presente?
Sim. Investimos bastante em marketing, publicidade, redes sociais, trazer jornalistas estrangeiros. O ano passado foi o melhor ano, mas havia um fator chamado Radiohead… Vendemos 17 mil bilhetes no estrangeiro. Em 2013 estamos a caminho de conseguir ter o segundo melhor ano, devemos vender entre 10 e 12 mil, sobretudo nos mercados espanhol e inglês.
Há também a ideia da exportação da marca Alive?
Somos uma empresa de eventos, criamos conceitos, procuramos oportunidades… Não vamos ter um franchising da marca, isso nem pensar. Mas estamos atentos às oportunidades. Hoje, em Portugal, temos um excelente know how da organização de grandes eventos. E há mercados que não sabem fazer como nós… Por isso, é natural que surjam oportunidades. Faz todo o sentido, até pela nossa capacidade de adaptação.
Quais são as suas melhores e piores recordações destes seis anos de Optimus Alive?
A melhor, não tenho dúvidas: foi a primeira vez que esgotámos um dia. Havia o mito urbano de que os festivais nunca esgotam mas isso não é verdade. Já esgotámos três vezes, e sempre por antecipação: no dia de Pearl Jam, de Coldplay e de Radiohead, em três anos seguidos. Claro que fico orgulhoso.
E a pior?
Aquele problema – ou um não problema, nunca chegámos a perceber bem… – no dia do concerto dos 30 Seconds to Mars [três concertos foram cancelados e dois atrasados por suspeitas de um problema técnico na estrutura do palco maior]. Temos procedimentos de segurança rigorosos e tomámos a decisão que nos pareceu mais correta.
Ter fundado uma empresa em concorrência direta com uma pessoa com quem esteve associado vários anos [Luís Montez, da Música no Coração] deu motivação à Everything is New? Houve uma espécie de despique?
As pessoas perceberam, na altura, porque é que aconteceu essa separação: tínhamos ideias diferentes sobre o futuro, e isso tem-se refletido no que as duas empresas têm feito. A concorrência não dá motivação nenhuma, o que dá motivação é ter resultados. A concorrência, por si, até pode cegar; é como no jogo, aposta-se mais para ganhar mais, e depois… perde-se. Não funcionamos assim. O que dá pica é fazer coisas como a exposição da Joana Vasconcelos [no Palácio da Ajuda, uma produção da Everything is New], não é a concorrência.
Mas provar que o que queria fazer de diferente funcionava bem, também dá pica, ou não?
Não, isso é para os casais, nós não éramos casados… Tivemos um percurso fantástico, fizemos coisas incríveis juntos, mas houve um princípio, um meio e um fim. Ponto.
E nos últimos anos têm provado que há espaço para os dois…
Há sempre espaço para todos, desde que se façam coisas diferenciadoras… E o mercado está a crescer!
Está?
Eu sou muito interessado em números, e vi, há pouco, os dados dos espectadores dos jogos de futebol da primeira Liga. Ainda não tenho a certeza, mas acho que, pela primeira vez, no ano passado, a música ultrapassou o futebol. Tem a ver com a tal questão da criação de públicos… E acho que o mercado da música ainda tem margem para crescer. As pessoas precisam de terapia Álvaro Covões. E a sociedade do século XXI valoriza não só a realização profissional e o bem estar financeiro, mas também, cada vez mais, a ocupação dos tempos livres, o lazer. Há uma necessidade de nos libertarmos de uma vida muito stressante, e os concertos fazem parte dessa “terapia”…
A música em vez do futebol e da tourada do século passado?
A tourada também pode ser, só não é mais por preconceito… Fica bem dizer “coitadinhos dos touros” mas ninguém se preocupa com o sofrimento das galinhas que comemos todos os dias…
É um aficionado?
Gosto de tourada, mas não sou aficionado. Não gosto de touros de morte, mas o toureio a cavalo e a pega acho um espetáculo. Se mandasse, investia nas imagens das pegas de caras para divulgar Portugal no mundo. Mostra bem o que é o povo português, a nossa coragem. Ainda não tive tempo para isso, mas até gostava de trabalhar com touradas. Do ponto de vista turístico, é um produto fantástico. Temos de valorizar as nossas tradições, e se pudermos ganhar dinheiro com isso…