Se há quem julgue ter descoberto Deus ao ver A Árvore da Vida, de Terrence Mallick, em Melancolia, de Lars Von Trier, vai descobrir o diabo. Só que este diabo que nos apavora, que não nos deixa dormir, não é a besta chifruda que cospe labaredas de fogo, nem o mal que se encarna, nos atormenta e nos faz desviar o olhar em Anticristo, é algo ainda mais violento, sádico, cruel, pérfido. O diabo é a ausência, o diabo é o nada eterno o diabo é o vazio absoluto.
Lars Von Trier começou os seus dois últimos filmes em câmara lenta, porque qualquer psicopata, mesmo o mais inexperiente e camuflado, sabe que a tortura é um prazer que ganha com a demora. Só que em Anticristo, a estilização do drama levantava sérias questões éticas, tornando o filme um objeto reprovável, enquanto aqui, em Melancolia, não há qualquer défice de ética a apontar, mas nem por isso a crueldade do realizador diminui. Sejamos claros: Lars Von Trier é um sádico que se entretém a torturar o seu público. É o realizador que odiamos gostar e também que gostamos de odiar
Ainda para mais quando ele, enquanto pessoa, se revela intratável, com ideias perigosas e próximas da extrema direita. As frases repugnantes ou disparatadas que o levaram a ser expulso de Cannes, nada refletem a natureza desta obra que se afasta de qualquer ideário fascista ou misógino que está presente em grande parte dos seus filmes, como Ondas de Paixão, Dançando no Escuro ou Anticristo.
Deste Melancolia, para mal dos nossos pecados, gostámos bastante. É seguramente um dos melhores filmes estreados em Portugal este ano e uma das três obras maiores de Von Trier, juntamente com Europa e Dogville. Também é o seu primeiro filme de ficção científica, apesar de fugir a quase todos os parâmetros do género.
Está dividido em duas partes. Na primeira a melancolia é um estado de espírito que domina a personagem, que sofre de uma psicose tipicamente trieriana. Ao ambiente de festa, de casamento, em que lentamente vamos percebendo que algo está podre no Reino da Dinamarca. E é uma sociedade que simbolicamente se desfaz, na sua obrigação de ser feliz , em preceitos artificiais e estruturas frágeis. Na segunda parte Melancolia é um planeta à deriva no espaço que ameaça chocar com a terra, que torna Justin (Kirsten Dunst que contracena com Charlotte Gainsbourg, com interpretações notáveis) a mais sã das dementes e nos confronta com esse vazio.
A estética do prelúdio do filme, em câmara lenta, aproxima-se da publicidade, o que faz sentido na lógica interna do filme, já que Justin é uma criativa, a quem é pedido um slogan. Mas depois muda para o estilo que marcou o seu dogma, com a câmara ao ombro e uma montagem naturalista que reforça a ideia de proximidade.
É curioso Lars Von Trier ter competido com Terrence Mallick em Cannes, porque, de certa forma, Melancolia é um anti-Árvore da Vida. O misticismo de Mallick levou-nos a criar na vida eterna e na redenção, tal como João Bénard da Costa dizia que acreditava na ressurreição porque a tinha vista n’A Palavra, de Dreyer. Lars Von Trier, que inventara um Deus demente em Ondas de Paixão, agora faz um dos maiores manifestos ateus, em que não há margem para qualquer consolação perante a eminência do fim absoluto. O ponto máximo da crueldade de Trier está na frase de Justin, em que ela revela que não há vida no universo. E por isso não há consolação possível, por mais rebuscada que seja. Nada de nada. A esmagadora vitória do vazio sobre a existência.