O silêncio é um dos recursos mais difíceis das artes, mas também um dos mais enriquecedores. No cinema, muitas vezes, as palavras explicitam o que as imagens sugerem, fechando as leituras, retirando as dúvidas. Mas o silêncio desafia-nos e enobrece-nos. Impacienta-nos à medida que nos abre horizontes. O silêncio é de ouro, diz-se por aí. E de facto tantas vezes faz falta, parta que se ouça todo o resto. Mas nada de confusões, Le Quattro Volte, o segundo filme do italiano Michelangelo Frammartino, não é um filme mudo, é apenas um filme em que ninguém fala de forma percetível. Se fosse um qualquer realizador brasileiro não resistia a encher as imagens com uma voz off descritiva, porventura pensando que assim ganharia um cunho literário, Frammartino optou simplesmente por deixar o filme calado. Sem que nada disto tenha a ver, insista-se, com o cinema mudo, em que as personagens falavam mas nós só as conseguíamos ouvir através das legendas nos separadores. Le Quattro Volte é um filme sonoro, claro está, a ausência de palavras apenas evidencia o som ambiente, belo como a paisagem que retrata, e dá um tom documental a uma ficção atípica. É evidentemente um filme experimental, que busca uma nova forma de fazer cinema, quebrando barreiras e fugindo ao óbvio, mas nem por isso se perde em deambulações estéticas. Até porque estruturalmente está longe de ser gratuito, apesar da narrativa não ser entrelaçada ou rebuscada e, a rigor, não se passar grande coisa (mas nem a nível narrativo é vazio). Frammartino refugia-nos nos confins de uma remota Calábria, perdida nas montanhas de um Sul, com gentes em vias de extinção, onde um velho pastor sobrevive como elemento da própria natureza, entre ecos e murmúrios. O lado bucólico é exposto, pela beleza das paisagens vazias de gente, de um mundo que se desfaz. Mas é o próprio ciclo da vida que interessa ao realizador, representado de forma tão incessante na imagem do pastor como na da árvore que cresce, é cortada e feita lenha, nas festas da aldeia. O envolvimento do pastor com a natureza é tal que esta compete consigo em termos de protagonismo. A mesma atenção é dada ao homem e às cabras que pastam, ao cão que o acompanha, às árvores que se cruzam pelo caminho, e mesmo a alguns objetos que tem na sua casa. Encontramos uma vida consonante, de um homem com o seu habitat, mas que não deixa de ter os seus contrastes. Curiosamente, toda esta toada contemplativa, em que nos deixamos arrastar pelos fios do horizonte, não impede o realizador de polvilhar o enredo aqui e ali com apontamentos de humor, que servem também de sarcasmo, que não escondem a consciência externa perante o que filma. Nunca poderia ser o humor verbal, nem sequer um humor físico propriamente dito… Mas um humor de situação, tão raro, que nos remete logo para o génio de Jacques Tati. A habilidade está em encontrar o caricato dentro da própria banalidade quotidiana, sem estragar o tom bucólico e lírico que nos maravilha. Le Quattro Volte é um filme em forma de poema, com uma forte carga contemplativa e emocional, exacerbada pela ausência de palavras, de um jovem realizador que soube experimentar. E enche-nos de vida, mesmo quando nos mostra de forma tão explícita e natural a própria morte. Um filme em que não se fala, mas em que não fica nada por dizer. Le Quattro Volte, de Michelangelo Frammartino, com Giuseppe Fuda, 88 minItália
As Quatro Voltas: PALAVRAS PARA QUÊ?
As Quatro Voltas, um filme em que não se fala, mas em que não fica nada por dizer.
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