“Nós que que fizemos e pensámos/ que pensámos e fizemos/ devemos divagar e perdermo-nos/ como leite derramado sobre uma pedra” (” We that have done and thought,/That have thought and done,/Must ramble, and thin out/Like milk spilt on a stone“).
É tão perturbante, quanto provocador. Tão insólito, quanto admirável que o minimal poema do irlandês WB Yeats, tenha ido dar uma volta ao mundo, e aos séculos, e aos idiomas, e aos caracteres e a outros versos cheios de eloquentes “amanhãs que cantam”, e às conjunturas económicas, e aos reviralhos políticos, para vir aqui parar, a este documentário híbrido chinês, 24 City (estreia-se quinta, dia 10). Obra de fronteiras liquefeitas, entre a realidade e a ficção, o seu autor, o cineasta, Jia Zhang Ke , um outsider do sistema oficial de produção cinematográfica na China, já premediadíssimo em festivais de todo o mundo, apesar dos seus 38 anos (foi Leão de Ouro, em 2006, no Festival de Veneza), voltou a pegar em vidas de pessoas banais que se deixam levar nas grandes correntezas da História. E ás vezes, flutuam como medusas, na apatia dos destinos. Outras vezes, agarram-se como moluscos às rochas, sovados pelas marés.
24 City parte deste extraordinário caudal. O de uma fábrica estatal de munições e motores de aviões que se vai engrossando e minguando consoante as diferentes etapas da reforma industrial chinesa, desde há 60 anos. Primeiro são as grandes vagas do plano quinquenal socialista, dos anos 50. Depois o grande turbilhão da euforia utópica da suplantação das economias do Reino Unido ou até dos EUA. Seguiu-se o pantanal, mais ou menos estagnado, dos tempos da revolução cultural chinesa (entre 1966 e 1976), e o grande rio voltou a ser riacho. Até que chegam novos cursos, novas viragens. Para a economia de mercado. A indústria permanece propriedade do Estado mas passa a ser gerida por entidades privadas. Estamos nos anos 90, novas águas correm por debaixo das pontes da economia chinesa. E torna a engrossar espantosamente o caudal, a indústria acelera-se a um nível espantoso mas com ela chegam os sobressaltos da cascata do capitalismo, da competitividade empresarial, os despedimentos em massa, os encerramentos das fábricas, sobrelotadas de funcionários, que não se conseguiram ajustar á nova economia. A torrente da Fábrica 420, a tal especializada em motores de aviões, fundada há 60 anos e sedeada em Chengdu, extinguiu-se. A água evaporou-se. Onde dantes corria o fluxo, agora restam os sulcos que deixou na terra e nas vidas de três gerações. Como as pedras rolantes, e os peixes sufocados, despojos deslocados de um ex-rio que deixou de passar. Os cerca de 560 mil metros quadrados, outrora ocupados pela fábrica, foram comprados para aí construir um complexo de luxo, de condomínios e centros comerciais. A fábrica foi desmantelada. Mas algumas paredes, chaminés, e resíduos continuam lá. Testemunhos de cimento e tijolo. Mas sobretudo continuam lá as memórias das pessoas. E essas têm menos ouvidos que as paredes, têm de ser resgatada, muitas vezes, às investidas traiçoeiras da amnésia colectiva.
Novas barragens
Mais uma vez este realizador trabalha as memórias, de uma forma magistralmente hábil, povoando o filme de vidas de pessoas, pequenos borbotos que desalinham o pano de fundo da história. Recorreu a entrevistas feitas a cinco trabalhadores mas também a monólogos ficcionais de três mulheres. Decidiu que esta era a melhor forma de representar as últimas décadas da História da China, porque, diz, a História é isso mesmo: “Um emaranhado de factos e de imaginação”.
Já em Natueza Morta (o seu anterior filme que chegou ás salas portuguesas em 2007), e que aliás foi muito além deste, em termos de poesia cinematográfica, Jia Zhang Ke ensaiava este estilo de filme-travessia, a cursar os tempos. Entre o que esteve, o que está, e a indefinição do que está para vir. Conhece-se o passado, encara-se o presente, só o futuro é indistinto. E ficam as vidas em suspensão. Nesse filme, o realizador ficcionava sobre o real: a construção do projecto hídrico das Três Gargantas, sobre o rio Yangtze. Uma mega-barragem no rio mais comprido da Ásia (6300 quilómetros), uma espécie de nova muralha da China aquática, planeada desde os tempos pré-Mao, e acalentada pessoalmente pelo próprio. E que se tornaria no maior gerador de electricidade do mundo, e obrigaria à deslocação de um milhão de pessoas, submergindo aldeias e toda uma cidade com dois mil anos de história, Fengjie. E também aí se via a China nesse limbo, entre cá e lá, entre a ruptura e a reconciliação, entre aquilo que se salva e se deixa para trás, entre o que se condena à vida e à morte, entre a destruição e a construção, entre o comunismo e o capitalismo, entre aquilo que já foi, mas ainda não é o que será. Neste estilo de transgressão de género, com os depoimentos parentéticos de ficção, essas pequenas rupturas de imaginário, em 24 City, contam-se histórias emocionalmente inesquecíveis. Como a da funcionária da fábrica que era tão bonita que ganhou a alcunha da “peça padrão”. Hoje já está velha, mas não se considera “uma peça de refugo”. Nesses tempos, lembra, colocaram nas instalações uma foto de um jovem oficial, muito bem parecido. Logo se gerou entre o operariado conjecturas alcoviteiras, alvitrava-se que aquele seria o futuro noivo da mais cobiçada beldade fabril de 20 anos. Ela própria começou a acalentar essa ideia, ou a apaixonar-se por essa ideia romântica. Um dia, os quadros superiores chamam os empregados para uma reunião geral. Anunciam que aquele rapaz da foto era um piloto de um avião despenhado, que o país levara oito anos a formar. Tinha 24 anos, o avião avariou-se em pleno voo, para tentar salvar a nave, o piloto não conseguiu ejectar-se a tempo. O desastre devera-se a uma avaria numa das peças produzidas na Fábrica 420. Algum de entre os operários era responsável por aquela morte.
Depois há os dramas de que não reza a história, nem se tornam os pauzinhos das engrenagens das maquinarias desta indústria. Nas grandes levas de pessoal para a fábrica, operários anlatados num barco, semanas a fio, de enjoos instalados, até chegar a Chengdu. O barco atraca num pequeno porto intermédio. Saem os embarcados para aliviar a agonia e pisar terra firme. Um casal, com o pequeno filho, distrai-se a comprar laranjas. O barco faz soar as sirenes, a viagem tem de continuar. Todos embarcam, mas onde está a criança, chamam por ela. Talvez já esteja dentro do barco, anseiam os pais. Não estava. O barco não podia esperar. As máquinas da fábrica continuariam a rolar no seu labor incessante. A mãe ainda chora. Como leite derramado sobre uma pedra.
