Como se pode falar na mesma entrevista de dois filmes tão distintos?
Pois, não sei. São projectos totalmente diferentes. Um é quase a ressaca do outro . O Como Desenhar… foi muito, muito trabalhado, exaustivamente trabalhado, escrito e rescrito, montado, remontado, um trabalho muito denso. O outro é totalmente livre, parece, por vezes destruturado, como um bloco de notas cinematográfico e a nossa equipa reduzia-se a três pessoas.
Mas isso era coerente com a forma como aqueles fotógrafos actuam, tentando captar o imediatismo, com todos os riscos e contingências?
Sabíamos que tínhamos de lhes fazer uma proposta estranha e original para que eles aderissem. Um deles só aceita um em cada 60 pedidos de entrevistas de todo o mundo. São considerados estrelas no Japão, dão autógrafos na rua. Araki, por exemplo, se quisermos fazer uma comparação ao nível da arte contemporânea, é um Picasso. O Japão é o país do mundo onde se editam mais livros de fotografia. Um só autor chega a editar 5 ou 6 por ano.
São ambos filmes sobre obsessões?
Em relação ao Guilherme, a personagem principal da ficção, definitivamente. Ainda por cima ele é um adolescente e na adolescência as obsessões são exponenciais. Os nossos fotógrafos, também, de certa maneira. Uma das grandes virtudes deste documentário é conseguir que eles dissessem coisas que normalmente não dizem, é-lhes difícil teorizar sobre o que fotografam. Está demasiado perto da vida.
Por outro lado, é um paradoxo, porque eles querem captar uma espécie de subconsciente, conseguindo a objectividade e subjectividade ao mesmo tempo…
Mas apesar de ser intuitivo há ali uma estratégia estética e narrativa, um assumir do risco, um sentido muito especial da distância, e isso torna-os singulares.
Querem prender o momento, o que é uma abstracção, não existe, porque o tempo passa. Mas essa não será também história do seu outro filme?
Bem, essa conversa levava-nos… (risos) A fotografia é sempre o real, mas é um real que já não existe porque é passado. Este documentário é sobre a geração dos anos 70 japonesa, que se revelou numa desconstrução do universo pictórico, assumindo o erro, o risco… E o real passa a ser estado mental, expressão de sentimentos. É muito existencialista aquela fotografia japonesa, estão sempre a falar deles próprios, não há relação com o outro, usam o outro para falar de si próprio
O que os faz únicos no panorama mundial é a questão da distância. Há um lado muito japonês. A distância é perfeita e muito respeitosa. Isso torna-os único em relação ao sujeito.
Este documentário é um filme experimental?
Não gosto da palavra, Uma vez, em Vila do Conde, o Manoel de Oliveira disse ‘ó filho isso das experiências é para se fazerem em casa (risos)’. Toda a criação, a arte e o cinema envolve uma pesquisa e um risco constante. É quase um dever procurar formas narrativas alternativas. E isso é sempre inerente. O cinema, se for bom, é todo experimentalista… Se for mau é todo conservador…
É um filme a preto e branco, muito trepidante…
É um filme mais abstracto, mas a minha longa metragem de ficção também tem imensas experiências em relação a formas narrativas.
Porque demorou tanto tempo a aparecer?
Estive três anos envolvido no processo de Como Desenhar Um Círculo Perfeito, os meus processo são longos, na escrita e na filmagem. Rescrevo muito e acabo com muitas horas de material. Depois é quase um processo analítico e psicanalítico. O tempo é fundamental. Tem de se encontra um tempo certo para expressar uma ideia. O peso certo do filme é difícil de encontrar. E o tempo exacto foi difícil d e encontrar no outro e neste. Mas entretanto fiz muita coisa, encenei duas peças de teatro, uma curta de Tonino Guerra que foi a Veneza, fiz um filho, fiz muita coisa (ri-se). O documentário foi o contrário, foi um processo libertador, um filme muito livre. Em oposição a um certo rigor formal que gosto e procuro nos meus filmes
Um círculo também é um paradoxo: não tem fim mas está sempre a recomeçar. Está parado mas sempre em movimento. O incesto, no seu filme, aparece tratado como um absoluto, que também circunscreve…
Levi Strauss escreveu imenso sobre o incesto, diz que a sua proibição é regra mais importante na fundação de uma sociedade, só isso permite ás pessoas “misturarem-se”.. Mas moralmente não pode ser condenável, porque tem subjacente a ideia de protecção da própria família e a ideia de se fechar sobre si próprio. De fazer um circulo perfeito. Mas continua a ser punido por lei. No entanto, se for desejado por ambas as partes e, desde que sejam irmãos da mesma idade, e não gere reprodução…
Não se interessou nada pelo incesto enquanto tabu ou tragédia à século XIX?
Nada, interessava-me o lado sociológico da questão. O que é trágico é que nunca se sai do sítio onde se começa. Por isso, o trágico naquela relação não é o aspecto moral, nem da condenação da sociedade, porque eles já estão fora da sociedade.
Mas essa outra obsessão dele, a de fazer círculos perfeitos cria também a ideia de dinamismo imutável… O incesto é isso?
É exactamente. Eu tinha pensado em fazer um filme sobre estes dois irmãos que vivem isolados num velho solar aristocrático, a cair aos pedaços e cheio de infiltrações. Depois surgiu-me esta imagem poderosíssima no Youtube de um professor canadiano de geometria descritiva que fazia círculos perfeitos à mão levantada. Fui a Otawa falar com ele, num liceu estilo Elephant do Gus Van Saint. Ele achou estranho, mas foi muito simpático, ensinou-me a fazer círculos perfeitos e eu ensinei a equipa toda. Mas um círculo desenhado assim nunca é perfeito, parece, mas não. É geometricamente impossível que o diâmetro seja sempre o mesmo.
Ele procura através da união com a irmã compensar a desunião dos pais?
Nunca tinha pensado nisso assim. Ele sente que a família está a despedaçar-se e arranja esta forma de manter a família junta, embora de uma forma perversa.
Comparando com a Alice, em que um pai tinha um processo obsessivo de procurar a filha perdida e este adolescente fixado em fazer sexo com a irmã, podemos pensar que as obsessões são um tema que lhe interessa?
Sim. Este é filme todo construído do ponto de vista de uma personagem extremamente obsessiva e, eu, enquanto realizador estou a contar uma história como se tivesse duas palas nos olhos, tudo o que é exterior à sua obsessão não interessa: não existe para ele, e raramente existe no filme.
No meio de tanta claustrofobia, de casas decadentes, uma cidade sempre chuvosa e hostil é intrigante aquela cena de mar…
Nunca tinha filmado a natureza assim.
O mar, que tal como Lisboa, não é nada dócil…
Pois, estamos sempre a combater contra a natureza exterior e contra a nossa própria.
Entretanto há uma personagem, um pobre louco, aparentemente exterior á história que também parece dependente, não de um círculo, mas de um circuito de autocarro…
Sim, e do ritual do pai do adolescente lhe deixar comida à porta de casa… Há um lado perverso do pai que o alimenta como quem alimenta um gato ou um alimento de estimação. Podia ser para ajudar mas não é, ele é escritor e serve-se dele para poder acabar de escrever a sua história
Afina é o pai que se alimenta dele e não tanto o contrário…
Pois. E foi o Gonçalo M. Tavares que me ajudou na escrita em tudo o que se realacionava com o pai, com os textos que ele escreve e lê….
Interessa-se por casas?
Sim, sendo um filme contado do ponto de vista de uma personagem, tal como o caso dos fotógrafos japoneses, aquelas casas, a forma como eles as vêem, também são o seu retrato mental. Tal como aquela Lisboa, era a forma como o pai da Alice via a cidade.
Neste filme, regressa a Lisboa…
Sim, mas a fotografia deste filme é muito diferente. Há um lado quente e carnal, há uma tensão sexual. No outro não, de todo.
A Alice foi extremamente bem sucedido, abriram-se imensas portas, mas não sentiu o síndroma da segunda obra?
Não senti. Mas compreendo que por parte do público e das outras pessoas exista essa curiosidade… Nas bandas também se é sempre comparado com o primeiro álbum. Sei que este vai ser sempre comparado com primeiro filme, mas enquanto estou a escrever e a filmar, não dedico dois minutos da minha vida a pensar nisso. Não me paralisa de todo. Quis fazer uma coisa muito diferente. É preciso mostrar que não se é só aquilo, por estar farto de ser associado a Alice. Acho que o Como Desenhar um Círculo Perfeito é um filme muito mais maduro. Para o outro, já olho para ele e noto coisas nitidamente de primeiro filme
No estrangeiro fazem associações do teu filme ao caso Maddie?
O filme ainda passado cinco anos continua a ir a festivais e as pessoas perguntam-me se é muito comum perderem-se crianças em Portugal (risos).
Como encontraste os dois actores (os irmãos)?
Com aquela idade (tinham os dois 17 anos) ninguém é actor. Não foram escolhas nada óbvias – ela mais, na verdade. Foi um casing longuíssimo, vi 700 miúdos… Está-se a trabalhar num universo que é um mundo. No fundo está-se sempre à procura de alguém que seja muito especial. No caso dele, procurava mais o cliché do adolescente, com borbulhas, mais estilo Gus Van Sant… E afinal, encontrei o anti-cliché, ele era bonito tinha força e achei que era melhor e transformou-me o filme numa coisa.
E o actor Francês Daniel Duval?
Tinha-o visto no Será que Vai Nevar este Natal, ele aceitou fazer o filme com cachet muito inferior. Penso que o facto de ele ser francês torna estas crianças ainda mais especiais. Ele representa um testemunho de um passado que tinha desaparecido, mas que ainda se pode adivinhar através da forma como ela vive
A ideia dos irmãos incestuosos nasceu antes da imagem do circulo perfeito?
Na génese do filme está uma história de uma família, destruturada, com incapacidade de gerir afectos… Falo de uma certa geração perdida, com uma série de utopias que deixam de fazer sentido. É uma Lisboa que me diz mais pessoalmente, mais intelectual, quase aristocrática…mas decadente.
Todas as casas do teu filme parecem decadentes?
Mas Lisboa está a cair aos bocados…
Em Alice, mostravas uma Lisboa cinzenta, pesada, escura…
Se eu voltasse a fazer ainda a fazia uma cidade mais dura.
Mesmo assim, nesta Lisboa está sempre a chover, nunca faz sol…
Eu gosto mais da luz no Inverno. Lisboa é uma cidade muito ingrata para fotografar, tem a calçada. Mas branca é o postal das 7 colinas. De resto são as massas que vivem nos arredores que parecem um filme de terror… Eu neste filme quis falar de um universo que me é mais próximo intelectualmente, e das pessoas que me rodeiam. E de uma Lisboa que está a desaparecer, das quintas e casas aristocráticas que ainda resistem…. Os irmãos continuam a viver numa casa destas, mas já sem dinheiro nenhum.
Interessas-te mesmo por casas?
Sim. Há um aspecto sempre arquitectónico na realização de um filme e na definição de um espaço. Aqui eu queria construir espaço muito denso e fechado, quase labiríntico e claustrofóbico… Vivem num solar gigante, mas cheio de infiltrações… Há um lado de algo que parou no tempo e por isso a minha ideia era criar um universo que fosse deles e o exterior surge sempre como uma agressão porque vivem num circulo perfeito.