Há um lugar na mancha das frases inolvidáveis, de cujo nome não consigo lembrar-me (talvez num livro, talvez num filme…), que diz qualquer coisa como isto: as pessoas esquecem o que fizeste, esquecem o que disseste, mas jamais esquecem como as fizeste sentir. A ferida cicatriza, a dor apaga-se, a ofensa prescreve, a nódoa negra some-se. A humilhação permanece… E pode ficar durante anos soterrada, armazenada, acondicionada numa bolha de contenções, sepultada por sedimentos, valados, tapumes, entulhos e fingidos olvidos, à espera de melhor ocasião. Até que, um dia, há um qualquer deslizamento de terras, e aí está ela, desobstruída, com o caminho livre. E a todos espanta, de onde pode ter surgido, de um momento para o outro, uma violência tão perversa, terrivelmente feroz, selvaticamente desumana. Quando, afinal, ela sempre esteve ali – entre nós – a engrossar as suas raízes, a sugar seivas de ressentimentos, a alimentar-se de ódios acumulados, a germinar silenciosamente num subsolo qualquer.
Há anos que a filmografia do genial realizador austríaco Michael Haneke se dedica a esta lavoura de desenterrar as raízes do mal, de colher as sementes do ódio, quando ainda estão a germinar e lançam os primeiros rebentos. Foi assim em
Nada a Esconder (2005), quando uma família bem instalada na intelectualidade francesa se vê perseguida por um passado que já todos julgavam no fundo de um porão. Ou em
Código Desconhecido (2000), em que o realizador antevê a explosão de ira e xenofobia na terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Até em
A Pianista (2001), em que o frio e cerebral Haneke vasculha nos recantos mais sórdidos da intimidade de cada um.
E sobretudo nos dois
Funny Games (de 1997 e 2007), em que o realizador se propôs, com uma década de permeio, fazer um remake cena a cena (quase shot by shot) do seu germânico filme de culto. Não por puro capricho, mas por se tratar de um quase filme-ensaio sobre a mais desonerada e niilista das violências. Dessas que não se encontram aparentemente à superfície, mas emergem – não se sabe de onde, apenas se suspeita.
Funny Games, o filme em que dois jovens impecavelmente vestidos de branco, louros e extremamente bem-educados levam uma noite a torturar metódica e ritualisticamente (desta forma bem adverbiada) uma família até à morte – e fazem-no porque sim -, é talvez aquele que mais se aproxima do agora estreado
O Laço Branco (Palma de Ouro, em Cannes, e Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento nos European Film Awards). Ambos se passam em dealbares de séculos: os dois clones cinematográficos, o primeiro nos finais do século XX, o outro nos princípios do século XXI, e
O Laço Branco, nos princípios do século XX, na placidez ordenada de um aldeia do Norte da Alemanha, antes de eclodir a Primeira Guerra Mundial.
Haneke filma esta ruralidade protestante, austera e deprimida, a preto e branco, não tanto por uma questão plástica ou de virtuosismo, mas para melhor nos conectar com as fotografias da época. E para nos lembrar que todo o filme é construído em clássico flashback, narrado em voz off, 50 anos depois dos acontecimentos e duas guerras transcorridas, pelo professor da aldeia.
Meninos de coro A aldeia flui ao ritmo das colheitas, com os seus habitantes vigiados pelos pilares inquestionáveis das hierarquias. O professor que é dono do saber. O pastor que é dono das almas. O médico que é dono da ciência. O feitor que é dono da obediência. O barão que é dono da aldeia toda. E os camponeses que não são donos de coisa nenhuma. E, na sombra, geralmente entrevista pelas câmaras, sempre por detrás de ombreiras, portas e tapumes, está outra categoria de habitantes, a que muito poucos dão atenção, a não ser para admoestar, vergastar e atemorizar: as crianças da aldeia.
Movem-se cautelosamente, sem serem ouvidas, como ratos das frestas, confraria silenciosa nos bastidores. Crianças de feições inequivocamente germânicas, louras, de olhar angelical e semblante indecifrável, e de uma expressividade enquanto actores perfeitamente notável (com destaque para Leonard Proxauf). Haneke conta que procurou crianças que se coadunassem fisicamente com as que apareciam em fotografias de época, ao longo de seis meses. Fez castings a 7 mil candidatos. Os meninos que cantam num coro, que beijam as mãos aos pais, que não se atrevem a olhar-lhes nos olhos, que são dóceis e submissos, tomam conta do filme. Sub-repticiamente. Às vezes, quase não os vemos, mas sabemos que eles andam por ali, na sombra dos adultos dominadores, dos seus pais, sobretudo dos homens. Burgueses puritanos na aparência e na homília, monstros domésticos, capazes de uma crueldade de feras (sem querer injuriar estas últimas). É neste clima de terror (e de total vulnerabilidade perante enraivecidos deuses celestes e terrestres) que estas crianças crescem. Exercem sobre eles o mal em nome do bem – que é sempre o mais perverso e terrível.
No Verão de 1913, narra a voz já envelhecida do professor, estranhos e trágicos acontecimentos assolaram a aldeia. Um fio invisível esticado entre duas árvores fez tropeçar o cavalo do médico, e a sua filha aproxima-se, primeiro, do cavalo. Depois, há o filho do barão barbaramente molestado até à inconsciência. Depois, uma janela aberta durante a noite leva à pneumonia um bebé recém-nascido. E, finalmente, o menino mongolóide da aldeia torturado até quase lhe furarem os olhos. Uma tarde, os dois filhos mais velhos do pastor chegam a casa depois do anoitecer. Ninguém se parece interessar pelo motivo do atraso – “não sei o que me entristece mais, se a vossa ausência, se o vosso regresso”, diz o pai -, o importante é punir exemplarmente a falta, jejum para toda a família, impiedosas e meticulosas vergastadas. A partir daí, decreta o pai e carrasco, as duas crianças passarão a usar, no braço, um laço branco que lhes recorde a pureza e a inocência da infância.
Lembramo-nos que os impecáveis jovens da tortura do filme anterior de Haneke também usavam luvas enquanto torturavam. Luvas brancas, de uma pureza imaculada. O branco é uma cor virginal, neutra, mas também passiva. As crianças transportam este laço no braço como uma humilhação, sinal de submissão, como os condenados à pena de morte vinham vestidos de branco para se renderem ao destino; ou as noivas vestem de branco como sinal de pureza, mas também de sujeição. O branco tem qualquer coisa de candura mas também de nefasto, lívido, de bloco operatório a aguardar a incisão. De vampírico, ao sugar todas as cores; é luto no Oriente. Kandinsky dizia que “o branco actua sobre a nossa alma como um silêncio absoluto”. Só que esse silêncio não está morto, transborda de possibilidades vivas… E é como o silêncio negro e doloroso com que Haneke abre e fecha os genéricos do filme.
Sem música todo o tempo, apenas aquela que esporadicamente as personagens produzem. No salão da baronesa, no baile de final da ceifa, na pianola do professor… E, claro, as vozes purificadas e angelicais dos meninos do coro.
Homens sem qualidades Com uma fotografia maravilhosamente austera, uma reconstituição de época extraordinária, cheia de pequenos ruídos, como os passos na neve, os rangeres de soalho, o chiar da carroça, as moscas nos casebres, além de umas composições meticulosas que fazem lembrar Dryer. Na forma crua e dura, embora muito pouco mística, como filma um cadáver de mulher da cintura para baixo, com o vulto do marido a aparecer, ou enquadra as paisagens vazias mas plenas de ventos e fantasmas, Haneke conduz o nosso olhar e a nossa inquietação, sem nunca nos dar respostas. Apenas insinuações. O realizador austríaco filma com um pudor admirável, não vemos uma cena de violência física, nem o pastor a vergastar os filhos (tudo ocorre atrás de uma porta fechada), nem o feitor a pontapear a criança contorcida no chão. Nem tão-pouco vemos as vítimas da tortura – encontramo-las só quando todo o mal já passou e ninguém viu nada. E nunca ninguém sabe nada.
Em contrapartida, a violência moral está ali exposta, até ao limite do intolerável. Quando o pastor determina que o filho passa a dormir de mãos atadas à cama para não ceder às tentações do Diabo. Ou quando a irmã, num acto de rebelião vingativa, mata, com uma tesoura, o pássaro do pai a quem ele trata com todos os desvelos, e deixa-o, sangrante, com as asas abertas, em cima da sua secretária, como uma arranjo floral funesto. E ainda noutra cena impiedosa, talvez a mais dura do filme. Quando o médico, num tom indiferente, assassina moralmente a amante e lhe chama decrépita: “És feia, desmazelada, flácida e tens mau hálito.” Depois de fazer amor com ela, diz, sente vontade de vomitar. A ausência de calor humano torna glaciares as previsões. A brutalidade inferida às crianças e às mulheres por todas estas autoridades, paternas, eclesiásticas e políticas, com diferentes graus de malvadez, há-de ser devolvida à sociedade, em grande escala. Este é um prefácio do nazismo. Estes miúdos serão, eles próprios, a autoridade nos anos 30, quando Hitler chega ao poder. Portanto, não se pergunte warum?, porquê? As raízes estavam lá. Como pedras batidas que guardam obstinadamente a sua faísca. O produto é interno e bruto.