Tarefa redundante esta de escrever sobre O Sangue e Pedro Costa, quando acaba de chegar ao mercado uma extensa monografia sobre o cineasta, com textos dos mais dedicados especialistas, nacionais e internacionais, que acompanharam o realizador desde a sua génese. E sabem olhar para os seus filmes como quem vê para além dos olhos. A este nível, recomendo vivamente o texto de Bénard da Costa (que o JL pré-publicou no seu último número), assim como as suas observações sobre cinco cenas de O Sangue, editadas como extra doDVD.
Nota fundamental é observar que em O Sangue todo e qualquer frame merecia ser emoldurado e exibido numa exposição, como aquela agora patente na Tate Galley, de Londres. Há um cuidado fotográfico extremo, em jogos de negros, onde, não raras vezes, a sombra se sobrepõe à luz, sugerindo que uma vela apagada emana escuridão. Nada disto é gratuito. A imagem é tão soturna como a história que se conta ou que se sonha. Mesmo no único momento de deslumbre, ou catarse, a ida para a feira, ao som da música dos The The (This is the Day), é envolta num clima contraditório, de traição, pecado, premonição de desgraça. A personagem de Vicente, negra e sombria, o papel da vida de Pedro Hestnes, é de uma dureza implacável. Uma determinação transformada em abismo. O mais solar dos filmes de Pedro Costa é negríssimo.
Em O Sangue encontramos um Pedro Costa perfeitamente maduro, mas ainda sem cimentar a sua linguagem, o que veio a acontecer mais à frente, com uma radicalização do discurso e das opções. É um filme de actores (Inês de Medeiros, Luís Miguel Cintra, Canto e Castro), que Costa dirige com uma mestria exemplar, tornando-os enormes, prevalecendo sempre uma apurada concepção estética, de beleza invulgar. Torna-se assim clara que esta maravilha do cinema português ultrapassa a sua condição de filme e ganha justamente o título de obra de arte. Não deve ser desperdiçada esta oportunidade rara de a ver no grande ecrã (em exibição no El Corte Inglés). E depois rever e rever na televisão lá de casa.