No fim de setembro, a propósito da renda moderada de 2300€ “desenhada” para a classe média, Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas e da Habitação, deixou cair uma afirmação que pode marcar o mandato: um agregado familiar com rendimento de 5750€ não é uma raridade, que “são muitas [as famílias]”* que o obtêm.
Essa leitura não é apenas estatisticamente duvidosa, é politicamente explosiva. Vejamos o cálculo simples: o Governo definiu “renda moderada” como 2300€. Ora, para essa renda corresponder ao limiar mais alto da taxa de esforço de cerca de 40%, um agregado familiar tem que ganhar 5750€/mês. A OCDE definiu como classe média um múltiplo entre os 75%-200% do rendimento mediano**. Em Portugal coloca o teto, em 2024, num agregado familiar com rendimento bruto mensal de cerca 2000€.
O raciocínio até faz sentido tecnicamente. O problema é político: ao escolher esse exemplo, o Governo coloca a fasquia da “classe média” num patamar onde estão apenas 6% dos agregados com mais rendimentos do País – 93% dos portugueses ficam automaticamente de fora.
A classe média, com rendimentos cujo teto seria cerca de 2000€, foi esquecida no meio dos quase 6000€ propostos pelo Governo, em favor de um retrato que caracteriza precisamente os rendimentos de topo entre os agregados familiares portugueses.
Para muitos (agora todos?) não é surpreendente que o ministro com a pasta da Habitação governe para aqueles cujos rendimentos são mais altos no meio de uma crise habitacional. Mas o verdadeiro escândalo é outro: durante anos, o discurso oficial foi o de que governaria para a classe média. Milhares de eleitores acreditaram nessa promessa, confiando que estavam incluídos ou até acima dessa caracterização, com os seus rendimentos familiares de 1500€, 2000€ ou 3000€. Agora, descobrem que, afinal, o Governo mente e nunca foi neles que pensou no desenho das políticas de classe média. A “classe média” prometida não é a maioria, mas uma minoria privilegiada.
E é aqui que a farsa se revela. Não estamos apenas perante uma escolha infeliz de palavras, estamos perante uma mentira política consciente. O Governo sabe bem que 5750€ não corresponde à realidade da classe média portuguesa, ou ao seu teto. Sabe bem que, pela isenção fiscal concedida nesta lei, vai incentivar os senhorios a praticar rendas até aos 2300€, agravando a atual crise da habitação e excluindo a esmagadora maioria da população do direito à habitação, enquanto confere o direito efetivo a não pagar impostos, que poderiam financiar políticas públicas de habitação, a muitos dos senhorios. E, mesmo assim, insiste em chamar a isso de “apoio à classe média”.
A consequência é óbvia: milhares de eleitores confiaram num Governo que dizia governar para eles e hoje percebem que foram deliberadamente enganados, e que aqueles que eles veem como ‘ricos’ ou ‘muito bem na vida’ são exatamente os mesmo que o Governo chama classe média. Quem acreditou na promessa da “classe média” percebe agora que, aos olhos do Governo, é pobre.
Num contexto de crise no País, se este Governo mente descaradamente sobre quem representa; se manipula conceitos básicos, definidos internacionalmente; se se furta às legítimas expectativas que criou nos seus eleitores, então é natural e legítimo que esses mesmos eleitores se sintam ultrajados, indignados e enganados.
Porque este não é um deslize semântico, é uma fraude política. É uma ofensa direta a quem todos os meses luta para pagar a renda, as contas e o supermercado. É a prova de que o Governo governa não para a maioria mas a favor de uma minoria privilegiada. Essa é a verdadeira redefinição que a entrevista trouxe à luz, de um Governo que não sabe nem conhece quem representa, a virar as costas a quem nele votou.
*Várias definições e fontes estatísticas existem de classe média na literatura, apresentadas por fontes reputadas com diferentes intervalos. Este artigo assume a definição e conjunto de dados que mais favorece o Governo, i.e. os que matematicamente caracterizam o teto mais alto para a definição de classe média, como argumenta o texto, mais afastada da realidade dos agregados familiares em Portugal, e mais próximo do proposto pelo Ministro das Infraestruturas e da Habitação como 5750€.
https://www.eurofound.europa.eu/pt/publications/all/snapshot-income-inequality-and-middle-class-across-eu
https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2019/05/under-pressure-the-squeezed-middle-class_f3fa7167/689afed1-en.pdf – para efeitos comparativos.
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Cálculos e fontes de dados:
Eurofund & EC: (12 646/14)200% = 1806€ Median equivalised net income – 12 646 https://ec.europa.eu/eurostat/databrowser/view/ilc_di03/default/table?lang=en&category=livcon.ilc.ilc_ip.ilc_di OECD & INE/Pordata: OECD & INE/Pordata: (13 842/14) 200% = 1977€
https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0012757&contexto=bd&selTab=tab2&xlang=PT
***https://eco.sapo.pt/entrevista/com-a-renda-ate-2-300-euros-estamos-a-ir-diretamente-a-classe-media/ – “Com a renda até 2.300 euros, estamos a ir diretamente à classe média” Ministro: ”Um rendimento do agregado familiar de 5.750. É isso que eu estou a dizer.”
ECO: “São poucas as famílias com esse nível de rendimento.”
Ministro: “Não, não são, são muitas.”
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