Cheira a primavera, os dias estão maiores, a nova palavra “desconfinar” anda nas bocas do mundo, como um raio de sol depois de uma tempestade. Pensamos em amigos à volta de uma mesa, conversas regadas a cerveja fresca, liberdade. Só que não. Esta é talvez a fase mais desafiante desde que o vírus entrou em circulação. “A responsabilidade do indivíduo aumenta muito”, sublinha Carlos Dias, médico e epidemiologista do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) .
Podemos retomar alguns comportamentos, até porque há evidência dos efeitos do confinamento sobre a saúde, mas temos de cumprir regras. Se o fizermos, será possível voltar a ir a um restaurante, à praia, até visitar familiares, sem que haja um ressurgimento da pandemia. Até porque, ao primeiro sinal de que está a correr mal, “volta tudo para trás”, antecipa Pedro Simões Coelho, da Nova IMS, Universidade Nova de Lisboa, que coordena um estudo com indicadores sobre a Covid-19, promovido pela Cotec, Associação Empresarial.
Este “correr mal” está bem definido, concretiza Carlos Dias: “Se depois de uma descida consistente do número de novos casos, estes subirem para valores anteriores à descida, se aumentarem os casos de infeção respiratória aguda grave, se aumentar a mortalidade, se houver transmissão comunitária generalizada, sem possibilidade de rastreamento de todos os contactos…” Entrámos por isso na fase do “informar, informar, informar”, diz o especialista.
A partir de agora, sempre que pensarmos em vida social ou férias, é obrigatório ter em conta o vírus. Tudo isto é possível, desde que se tenha em mente as regras de controlo da epidemia – lavar bem as mãos, usar máscara em espaços fechados, manter o distanciamento entre pessoas. Também convém ter um plano B e um C. “O vírus não vai desaparecer só porque a temperatura aumenta. Isso é um mito”, sublinha o especialista do INSA.
A história mostra que, no verão, a taxa de infeções respiratórias diminui. Passamos menos tempo em espaços fechados, as escolas estão encerradas, e isto diminui a possibilidade de vírus e bactérias que causam doença respiratória. Apesar de não ser consensual, parece que o aumento dos níveis de melatonina e de vitamina D, à conta da luz solar, contribui para um fortalecimento do sistema imunitário, o que oferece maior proteção contra infeções. Portanto, é previsível que possa haver algum efeito do calor na diminuição da transmissão do SARS-CoV-2.
Mas não se pense que o inimigo irá desaparecer de circulação, avisa Carlos Dias. Até porque, sem limitações, o vírus tem potencial para se transmitir rapidamente e causar problemas na capacidade de resposta do SNS. “O vírus transmite-se bem de pessoa para pessoa e há uma grande percentagem da população que ainda é suscetível”, sublinha André Peralta-Santos, especialista da Escola Nacional de Saúde Pública. “Até agora, a maioria dos contágios ocorreu em casa, mas isso foi no tempo em que estivemos confinados. É claro que a utilização de transportes públicos, a frequência de restaurantes – ninguém come de máscara –, pode aumentar o risco”, nota Peralta-Santos, que tem estado a colaborar na identificação dos contactos de pessoas que testaram positivo para a Covid-19. E é claro que também este trabalho se irá complicar com a abertura de certos serviços porque passam a existir muito mais contactos.
Desconfinamento regional
Para Pedro Simões Coelho, não seria descabido pensar numa estratégia de desconfinamento que tivesse em conta o risco de contágio (estimado no modelo da Nova a partir de cinco parâmetros diferentes, como a densidade populacional ou a percentagem de idosos) e até o tal valor de R0, que indica a taxa de reprodução da infeção. No estudo da Nova IMS, que está disponível online, percebe-se claramente a grande variabilidade nacional. Se nos Açores o R0 é, nesta semana, de 0,23 e no Algarve de 0,54, no Alentejo e em Lisboa e Vale do Tejo este valor está ainda acima da unidade, indicador de crescimento da epidemia. “Dever-se-ia considerar não desconfinar tudo ao mesmo tempo, ser um processo por regiões, como está a acontecer em Espanha”, defende o perito da Nova. Principalmente se houver intenção de reativar o turismo. “Vamos entrar numa fase em que daremos dois passos à frente e um para trás”, ilustra Pedro Simões Coelho.
A informação sobre o risco de contágio também pode ajudar a restabelecer a confiança da população, que foi baixando desde o início da epidemia, conforme concluiu um estudo no qual participou a Universidade de Coimbra (UC). “O medo vai continuar a existir. Mas as medidas restritivas e o cumprimento das recomendações das autoridades de saúde ajudam a restabelecer a sensação de segurança”, sublinha a professora da UC Cláudia Seabra. “Numa primeira fase, serão os mais jovens, mais destemidos, os primeiros a retomar as atividades”, antecipa.
Nesta fase crítica, cujo impacto será avaliado a partir da próxima semana, André Peralta-Santos mantém a confiança no sentido cívico dos portugueses. “Havia algumas condições para temer o pior na primeira fase da epidemia e até correu bem, porque houve bom senso, rapidez na decisão política e um esforço extra por parte dos profissionais de saúde. Agora, temos de aprender a viver com este novo normal e adaptarmo-nos à incerteza quanto ao futuro.”
Filipe Froes
Pneumologista
Nos meses de março e de abril, fomos nós que testámos o vírus. Agora é o vírus que nos vai testar, a nós, à nossa capacidade de retomar a vida. Tudo terá de ser feito com restrições, ir a um restaurante, a um novo sítio. Teremos de planear, de pensar no que vamos fazer e como o iremos fazer – se vamos usar cartão para pagar, se nos aproximamos ou não –, de forma a minimizar o risco. A Humanidade está a passar por um dos maiores testes de sempre. O nosso comportamento ditará se seremos parte do problema ou parte da solução.