O debate já estava aceso mas a intervenção de Miguel Morgado, 41 anos, ex-assessor político de Passos Coelho e um dos atuais vice-presidentes da bancada social-democrata, atirou mais gasolina para a fogueira. Com o livro O Trabalho, uma Visão de Mercado (2013, FFMS/Relógio d’Água) em riste, o deputado do PSD atirou-se ao ministro das Finanças. Foi ontem, na Assembleia da República. O que pensava, afinal, o ministro enquanto era académico?
Na obra, Mário Centeno, quadro do Banco de Portugal e doutorado em Harvard, revê grande parte das questões relacionadas com o emprego e a sua face negra, o desemprego. O atual ministro defende que existe uma grande segmentação do mercado de trabalho, com elevados níveis de proteção para os que se encontram no mercado e com baixos níveis de proteção e muita rotatividade para os recém-chegados. Na obra, defende a existência de um contrato único, remetendo os a prazo apenas para situações muito excecionais.
Miguel Morgado citou duas passagens do livro. Uma diz respeito ao salário mínimo (SM) e ao seu impacto no mercado de trabalho. Escreve Centeno (página 54): “É necessário que o aumento do salário mínimo não o ponha acima da produtividade do trabalhador.” Miguel Morgado serviu-se desta passagem para notar que o programa de governo prevê um aumento do SM de cerca de 20%, muito aquém, segundo o deputado, do aumento da produtividade esperada.
Centeno, na mesma parte do livro, nota que o aumento do salário mínimo pode ter impacto sobre a distribuição de salários. “A evidência existente indicia que há um efeito negativo dos aumentos do salário mínimo na variação salarial dos trabalhadores que têm salários imediatamente acima. Intuitivamente, os (fortes) aumentos do salário mínimo formam uma onda que se abate sobre os salários medianos da economia, arrastando-os para aumentos de menor magnitude”, escreve o atual ministro. E calcula mesmo esse impacto. “Por cada ponto percentual de aumento do salário mínimo, os trabalhadores com salários abaixo da mediana veem os seus salários crescer menos 0,1 pontos percentuais”.
A outra referência de Morgado dizia respeito à atomização das negociações salariais. Mário Centeno defende a negociação ao nível da empresa, sem intervenção dos sindicatos setoriais. As opiniões de Mário Centeno farão corar (de ira?) os sindicalistas da CGTP, a central sindical afecta ao PCP, um dos partidos que apoia o executivo de António Costa.
Escreve o doutorado em Harvard que “a maior crítica que é feita às portarias de extensão é a de que elas permitem que o poder dos signatários [de um acordo salarial] vá muito além da sua própria representatividade”. As portarias de extensão permitem, a pedido de um signatário, estender ao resto do setor as regras constantes de um acordo salarial. “Infelizmente, estas regras prejudicam as negociações ao nível da empresa”, defende Mário Centeno, adiantando que seria “preferível promover o envolvimento das comissões de trabalhadores” nas negociações em vez de as deixar aos sindicatos, cuja “perspectiva negocial não é centrada exclusivamente nas experiências económicas das empresas”.
Num dos capítulos do livro, “Um sistema de determinação salarial atomizado”, Centeno acrescenta que “empresários e trabalhadores têm de compreender que o alargamento das possibilidades de negociação directa é benéfico para ambos” (pág. 97). E assinala o acordo na Autoeuropa como um “exemplo de sucesso na gestão interna das relações laborais”.
No debate parlamentar, Miguel Morgado ironizou, chamando a Centeno “marxista na versão Groucho, porque foi Groucho Marx que disse ‘estes são os meus princípios, se não gostam, bem, eu tenho outros’”. Na resposta a Morgado, o ministro disse: “Não tente transpor conclusões de artigos científicos para a legislação nacional, porque se tentar fazer isso é um passo para o desastre”. Eram um passo para o desastre, as suas ideias como académico? Ou ontem deu um tiro no pé?